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segunda-feira, dezembro 29, 2014

Ser

Não é incrível
que por cima e por baixo do espaço
azul vazio  passe a luz
que a pedra redonda barra em barco
Não é incrível
que das camadas leves de branco
esparso em veloz mutação
um grão caia e do chão
verde cresça e alimente
Não é incrível
depois de tudo somado
o animal alado sonha em ser bicho
quer cafuné, brincar na roda
e nenhuma razão tem fundação
se não mais vida
que todo ser merece
antes de ser molécula
acontece

Afonso Lima

domingo, dezembro 28, 2014

Aquarelas

O jovem Hans tinha um talento para aquarelas. Pelo menos foi o que lhe disseram, na praia, as tias animadas no almoço em frente ao mar. Ele passou aquela noite no quarto desenhando, e tiveram que chamá-lo duas vezes para o jantar. Entre um charuto e outro, seu pai deixou claro que isso seria impensável. “Temos um nome nessa cidade, não viverás com a renda de um artista”. Seus sonhos se despedaçaram mal formulados. Ele passou no vestibular, dedicou-se com afinco aos estudos de advocacia. Conquistou algumas meninas com suas camisas pólo de marca, aprendeu a dirigir bêbado, conheceu os meandros de Miami e já se via como herdeiro do pequeno império, confiante da sua superioridade. Adotou até o modo de falar de seus tios, ao referir-se aos “bárbaros inferiores”. Infelizmente, um ano depois de sua formatura, quando ia ser efetivado no escritório de um amigo do pai (“não podemos dar de bandeja uma posição”), caiu doente.
Pálido, febril, sem nada que pudesse ser diagnosticado, recomendou o médico da família que fosse para a casa de campo. Durou seis meses e cento e vinte aquarelas. Hoje elas estão na coleção do Museu Nacional.

Afonso Lima  

sábado, dezembro 27, 2014

A doutrina não escrita

No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Eloah, e era Eloah.
Ele estava com Eloah no princípio.
Todas as coisas foram feitas da Palavra; sem ela, nada do que existe teria sido feito.
Na Palavra estava a existência, e esta era a luz dos homens.
A luz brilha nas trevas, e as trevas não a derrotaram.
Surgiu um homem enviado por Eloah, chamado Fashi Yochanan.
Estava chegando ao mundo a verdadeira luz, que ilumina todos os homens e retira dos vasos ocultos a luz neles presa. Aquele que é a Palavra estava no mundo, e o mundo foi feito por intermédio dela, mas o mundo não o reconheceu. Veio para o que era de sua natureza, mas a ignorância os afugentou.

Contudo, aos que criam a justiça, aos que creram na paz, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Eloah.  Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu em nós cuidando dos fracos e seu fogo em nós era a compaixão, pois que disse: “Eu lancei fogo sobre o mundo, e eis que estou cuidando dele até que queime.” Vimos a sua glória, glória em nós como Unigênito vindo do Pai. Ninguém jamais viu a Eloah, mas o deus Unigênito, que está junto da Paz, o tornou conhecido.

Afonso Lima

terça-feira, dezembro 23, 2014

Mapas

Velha dama, dourada, poesia de

folhas secas nas calçadas de pedra

as nuvens sobre o lago, tic-tac

larga avenida onde punks tocam

Parangolé no bar, os grilos e as estrelas…

clientes antigos conversam no
sebo


Olhos que me assassinaram

Passear entre as árvores, na praça

pássaros que passarinham

ler jornal no café, na calçada

no centro, tomar sorvete no Mercado

os cristais e o sushi

até amanha se Deus quiser


Afonso Lima

segunda-feira, dezembro 22, 2014

CENSURADO

Arte:
A peça já em ensaio. 
Cinco horas esperando o ministro. 
Vamos pintar o quadro da primeira dama.
Tem outras peças proibidas.
Vamos tirar alguns palavrões.
Ganhou os maiores prêmios.

"Acho que vi uma luz do outro lado do rio".


História:
O presidente decidiu quebrar a hegemonia das oligarquias que comandavam os principais meios de comunicações.

Apoiava a candidatura de JK para as eleições previstas para 1965.
Criticado por políticos e jornalistas favoráveis ao regime
Os aeroportos e a infraestrutura foram tomados pelo governo sem indenização.
Está no cemitério de La Batignolle, na zona metropolitana de Paris.

Economia:
- programas humorísticos 
- programas de esportes
- líder de audiência na cidade de São Paulo.
grandes cantores
- inovou no telejornalismo
[Podia ser que houvesse um golpe.

"Acho que vi uma luz do outro lado do rio".


Política:

A peça já em ensaio. 
Ele fez com que o presidente voltasse em um avião de sua companhia. 
Cinco horas esperando o ministro. 
Podia ser que houvesse um golpe.
Líder de audiência na cidade de São Paulo.
Era exportador, mas apoiava Jango.
Programa censurado, tela negra.
A TV foi destruída. Todos os funcionários demitidos.  
O artista ganhou os maiores prêmios.

Afonso Lima



quarta-feira, dezembro 17, 2014

Infinitos

A inteligência da pedra
a matemática da sombra 
e da folha de chuva 
sofrer com o sofrido
amanhecer de leve
negro como terra
eu casca e inseto
pisar o mundo no ato
em rede saber como peixe 
pensar como pensa o mato
calcular no estômago
nunca silenciar
viajar para outras mentes
e utopias coletivas
e água nas sementes
nada já acabado
mente-fogo mente-mar
colher frutos espalhados
para que seja progresso 
esperança de alvorada
pensar do eu desunido, revirado
racional úmido
saber que é ato e lugar
coragem de imaginar
saber na raiz na plana água
para tudo continuar canto
no espelho do olho
riqueza é circular
distribuição sagrada
comum sede e comum som
antes da divisão
para que seja alegre a soma
o volume de vida aumentado
não há lei nem passado
onde tudo recomeça
para que seja mais e mais espaço
de festa
pedra negra é fundo 
pedra pedra pedra coração
do mundo

Afonso LIma

segunda-feira, dezembro 15, 2014

Versos à mais

Cadê o certo que tava aqui?
Estar aberto que o mundo anda
canta cada coisa cada começo
nem tem tanto à ver saber estar desperto
é mais espero e olhar direito
com mais coragem a coisa da
malandragem que tudo se faz do tempo
e sem perfeito tudo é 
do momento
sangue novo se mistura
membrana rompida sem margem
fruta mais crua 
e eu e nós somos fora, mais além 
conceito vem conceito vai 
o dia cobra o dia cospe
o cimento se desfaz
pilares foram ao chão
transição transborda
é a vida pega no ar
a gente fica e quer mais 
quem carimba sim e não
no bicho coração?
desmonte confuso
um caso de estudo
e tudo era linguagem acordo
vivo não fica morto
O cool com as calças 
também era montagem

Afonso Lima

domingo, dezembro 14, 2014

O duplo

Ele achara que estava sendo perseguido quando tomou um coche para ir embora da Ópera.
Estava assustado, no fundo, eu iria ganhar uma distinção que meu pai nunca tivera.
Quando o conheci? Num café de Viena, onde se discutia fervorosamente a lenta decadência do demônio de Laplace, do objetivismo da ciência que se considerava indestrutível. Freud parecia nervoso naquele dia.
Eu subi no palco, recebi o diploma, tive a impressão de vê-lo na plateia e desmaiei como o mais tolo animal criado pela evolução.
A culpa sempre é um duplo - escreveu o médico no seu escritório.
O império mais antigo do mundo, antissemitas agredindo pessoas, industria florescente, bancos, a "dissociação", a dança, a música, o teatro: os homens se reuniam no seu clube para debater lógica e epistemologia.
Cruzo uma rua, entro numa viela escura, aquele homem tem um aspecto sombrio, veste-se com desalinho, mas no entanto. No entanto. Serei eu?
Eu fui assistir sua conferência, eram umas vinte pessoas ouvindo alguém que, como Musil, falaria das "secretas existências no homem", e ele falou: os genitores seriam os primeiros objetos dos desejos eróticos da criança, incitada pelos próprios pais; os sentimentos seriam de hostilidade, tanto o como de ternura. Saldo: duas mulheres de chapéu saem entre cochichos, homem alto de terno cinza parece dormir, três homens com jeito de estudantes aplaudem em pé e silêncio.
Agora eu tenho certeza. Ele existe e está neste café. Olhou nessa direção? Eu o convido a sentar-se? Ele está se levantando, se aproxima, estou gelado.
...Na espreguiçadeira do convés, o doutor semidormia: via ao longe o fantasma de sua irmã morta e, mais perto, uma jovem em vestido de verão, que parecia chamá-lo para a vida.  - Primeiros rascunhos.
Uma máscara, seu rosto parecia ter se transformado.
"Muito prazer. Arthur. Também tenho consultório. Podemos ser amigos".

Afonso Lima

sexta-feira, dezembro 12, 2014

OBAN 1972

Ele desistiu de dar aulas. Um aluno o ameaçou: "Ou me dá dez ou te mato na saída".
Foi visitar o pai. Virara alcoólatra depois da tortura.
 - Pai, estou querendo sair do Brasil. Contou como seus alunos não sabiam ler.
O pai olhava a piscina. Onde a mãe tentara se matar uma vez, depois de tomar muitos remédios.
Um fio elétrico no ânus. A mulher estuprada na sua frente.
O avô tirava as capas dos livros, colocava outras capas, riscava os trechos com doutrina comunista ou erotismo, escrevia ao lado "terroristas" ou "pornográfico".
O pai foi atrás do coronel para perguntar por que o filho, que não ser envolvido com nada, fora preso. "Ele está levando socos na barriga, mas isso na faculdade também acontece. Choques, mas é mais psicológico".
 - Eu acho que você deve ir.
Inverno quando o avião decolou.

Afonso Lima

terça-feira, dezembro 09, 2014

Worstward Ho./PiorporVir! - traduzindo Beckett

Worstward Ho (1983)

On. Say on. Be said on. Somehow on. Till nohow on. Said nohow on.

Say for be said. Missaid. From now say for missaid.

Say a body. Where none. No mind. Where none. That at least. A place. Where none. For the body. To be in. Move in. Out of. Back into. No. No out. No back. Only in. Stay in. On in. Still.

All of old. Nothing else ever. Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better.


PiorporVir!

Vai. Dizer vai. Ser dito vai. De algum modo vai. Até sem como vai. Dito sem como vai.

Dizer para ser dito. Mal dito. Por agora dizer para ser mal dito.

Dizer um corpo. Onde não. Sem mente. Onde não. Isso ao menos. Um lugar. Onde não. Para o corpo. Para estar. Andar lá. Fora de. Para lá. Não. Não fora. Não voltar. Só lá. Ficar lá. Em lá. Quieto.

Todo o velho. Nada mais nunca. Nunca tentado. Sempre falhado. Não importa. Tentar ainda. Falhar ainda. Falhar melhor. (...)

(versão Afonso Lima)


quinta-feira, dezembro 04, 2014

2050

"Toda organização que não seja do indivíduo para o indivíduo é uma forma de servidão" - diz a epígrafe. 
O livro é dividido em três partes:
Visão de mundo.
Hábitos mentais.
Eliminando outras formas de pensamento.

No primeiro capítulo, muito técnico, em cada subtema foi escrito um comentário à mão:

memória - os melhores livros são os que dizem o que você já sabe
desejo - é a sua alma que está sob planejamento
linguagem - os fatos não têm importância.

Sabemos que os membros afiliados - milhares, quase um estado inteiro - eram refratários a quaisquer fatos ou dados que contrariassem suas convicções. Já foi observado que a substituição dos professores por robôs pelo governo da cidade-estado (a aliança com o Partido foi provada há tempo) foi um dos processos que mais colaboraram (ou foram mais eficazes) na limitação de conceitos indesejados. (“um intelecto seria preciso para uma revolta”).
Uma espécie de poema acompanha a sessão sobre linguagem:
Você sabe, eles são perigosos.
Você sabe, eles dominaram o Estado.
Você sabe, eles destruirão a liberdade.
Em “Eliminando outras formas de pensamento” temos itens como: Orgasmo contínuo, A razão é facilmente moldada, Sobre o departamento da contranotícia (“cada verdade deve ser abolida por uma outra de acordo com a doutrina”), Cidade dos Intelectuais: anulação (“É preciso destruiu a autoridade moral”).

O Posfácio dá exemplos de como o Conglomerado de Controle, com 75% do total, aliado à múltiplas plataformas e à repetição pode fabricar uma memória impermeável à desconstrução. 

O exemplo é dado em uma tabela, com aceitação por parte do público depois de um ano de veiculação reiterada - três vezes por dia em três programas diferentes.
70% - os empresários são o melhor governo.
84% - deixar o dinheiro parado é sempre melhor.
67% - perdedor, vc não tem autoridade suficiente.
50% - eu concordo que quem não paga impostos é inútil.

A miséria crescente necessita de uma polícia ativa”, diz um trecho do Posfácio. "O medo da lavagem cerebral do comunismo deve servir para derrotar o inimigo". 

O Apêndice comenta a história de um rapaz que matou com um machado 30 moradores de rua em 3 dias depois de ouvir um aplicativo com cenas de guerra no qual se repetia: A desigualdade é necessária para o progresso.

Afonso Lima

segunda-feira, dezembro 01, 2014

O sepulcro

"Um profissional admirável, um pai perfeito, um cidadão exemplar" - era o que todos falavam dele. A única forma então de destruí-lo era seu único defeito: a curiosidade excessiva. 
Em um dia em que eu o recebia em minha casa de campo para um almoço, estando minha família em viagem, andando por um canto longínquo, comentei ser esse o rio que levava ao cemitério etrusco que havia na minha propriedade e que me inspirara meu primeiro romance. 

- Foi um estranho sonho que eu tive. Eu caminhava pelo campo e achava um fragmento de vaso grego. Depois, o céu escurecia e eu me escondia da tempestade no que viria a ser as ruínas de um cemitério. O sonho se transformava em pesadelo e eu temia encontrar algo que não devia. Quando acordei, corri até o local e procurei as mesmas ruínas. De fato, elas estavam lá. Penetrei temerariamente o segredo. O que eu vi a seguir me estarreceu, pensei que perderia a razão e permaneci uns dois meses na cama, sombrio e assustado. Por fim, mandei construir, nesse canto ermo da propriedade, o labirinto, que hoje encerra o túmulo. Monstros de mármore avisam do perigo. Relevos em paredes de pedra contam dos infortúnios aqueles que sofrem no Inferno. Crânios pendurados em estacas ameaçam os sobreviventes para que lembrem como é vão buscar saída. 
Dito isso, almoçamos e tratei de me recolher em meus aposentos. Os cavalos continuavam encilhados. Eu mandei o criado avisar de um mal estar e passei a tarde lendo meu inglês favorito. 
No outro dia, fizemos a busca pelo meu amigo, mas ninguém o encontrou. Caiu muita neve aquela noite. 

Afonso Lima