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domingo, fevereiro 26, 2017

Em busca

meu tempo não é um tempo de solidão
de vastas montanhas e água corrente
de generosidade
meus ossos falam com teus ossos
não serão tão diferentes
os nomes às coisas atribuídos
eu deixo para os inseguros
tantas coisas que eu não posso mudar
a morte que eu não posso esquecer
como as coisas saem do controle
mas agora
as coisas invisíveis serão desprezadas
em pedaços sou melhor talvez
pelo menos não imponho nada a ninguém
e aceito o que foi e será
tenho pouco mas me orgulho
honra e glória sem realização não quero
não quero nada nem sequer amor
eu venho lhes trazer o espaço infinito entre um passo e outro
porque estou cansado dos fatos, dos dados feitos de opinião
quero o espaço no qual força e fraqueza dançam juntas
a rapidez não resolve nada de fato
não é hora de mestres, mas de curiosos
meu tempo odeia
grandes verdades, pequenos sentimentos
horizonte róseo e pensamento livre
perder por um dia, que contentamento!
duvidar e sair do caminho
e quem sabe no tempo perdido se ache no outro um caminho
meu tempo não é de memória
lentidão, névoa e oh! tristeza
(a tristeza observa o pensamento da multidão)
não é de fracassar e ser ridículo
meu tempo esconde a dor
(porque pode ser que haja mais felicidade que essa falsa
rápida sob demanda)
a honestidade, que faz a diligência
quero deixar-me em aberto
tão perdido no improviso
meu tempo despreza o não resolvido
porque tudo pode estar errado
sou pétala na água
torre cinzenta esperando a tempestade
meu instrumento é tocado na montanha
tão confuso e lutando e caindo
estudo as formas da beleza e sou com muitos
meu tempo pensa que a velocidade é conquista
mas o espetáculo do campo de batalha assusta
valores corrompidos, vitórias mentirosas
homens tristes pensaram em novos sistemas
sou das conversas na cozinha, dos livros, da ação sábia
o que é é belo porque a vida é isso
meu tempo finge para si mesmo a perfeição.

Afonso Lima



traduzindo Emily Brontë - dois poemas

Minha alma não é covarde  (1846)

The following are the last lines my sister Emily ever wrote." (Charlotte).


Nada covarde a alma minha

Sem tremer nesse mundo de tempestades pleno

Vejo o Paraíso, que brilha!

E a fé brilha junto, e eu nada temo!


Deus, que é quem sou!

Todo poderoso - Divindade sempre presente!

Vida - que em mim pousou

Como eu - Vida Imortal - tenho poder em Ti!


Vãos são os mil credos

Que movem os corações dos homens: Vaidade

Ervas daninhas e enganos cegos

Ou a espuma em meio à Imensidade 


Em despertar a dúvida em Ti

Tão rápido amparados na Tua Infinidade! 

Ancorados com segurança ali

A pedra inamovível da Imortalidade!


Com amor que a tudo vem envolver

Teu espírito a tudo ampara e anima

Tudo atinge e faz crescer

Muda, sustenta, dissolve, cria e reanima


Quando terra e homem vierem a desaparecer

E sóis e universos deixarem de ser 

Quando sozinho estiver o Ser 

Toda a existência em Ti vai existir 


Não há espaço para Medo

Nem a mínima parte do seu poder pode ser apagada

Tua - TUA arte - Ser e Alento!

Tua Arte - não pode voltar ao nada!


versão: Afonso Jr. Lima


Lembrança (1845)


O frio sobre a terra - e a neve se acumula sobre ti
Longe, longe estou - frio no túmulo triste 
Meu único amor, amor por ti, será que esqueci?
Separada pelo Tempo, que separa tudo que existe 

Agora, sozinha, não mais meu pensamento vaga
Sobre as montanhas, nas praias invernais 
Abrindo as asas sobre o pântano e o que a terra traga
Teu coração nobre para sempre, mais e mais! 

O frio na terra, quinze dezembros sem vida 
Desses morros mortos tornados em verdor
Fiel é o espírito que lembra ainda
Depois desses anos de mudança e dor 

Doce Amor da juventude, perdoe se eu me esquecer 
Enquanto a maré do mundo me arrasta como vendaval
Desejos duros e esperanças do dever 
Esperanças que obscurecem, mas não podem te fazer mal!

No meu céu outra luz nunca foi acendida 
Não houve uma segunda manhã na minha vida, amigo
Toda a alegria da minha vida veio da tua vida querida
E toda a alegria da minha vida está nessa cova contigo

Mas quando os dourados dias de sonhos tinham virado nada 
E até o Desespero, saciado, não mais destruía
Então eu aprendi como a existência poderia ser apreciada,
Fortalecida e alimentada sem o auxílio da alegria

Então sequei as lágrimas da inútil paixão
Proibi minha alma jovem de buscar a tua 
Neguei o desejo ardente de te acompanhar 
De deitar nesse, mais que meu, esse caixão

Não ouso ainda ouvir o que o coração sente
Me entregar à dor torturante da Memória
Mesmo bebendo profundamente dessa divina angústia,
Como buscar o mundo vazio novamente?

versão: Afonso Jr. Lima 

-

No Coward Soul Is Mine

No coward soul is mine,
No trembler in the world's storm-troubled sphere:
I see Heaven's glories shine,
And faith shines equal, arming me from fear.

O God within my breast,
Almighty, ever-present Deity!
Life--that in me has rest,
As I--undying Life--have power in thee!

Vain are the thousand creeds
That move men's hearts: unutterably vain;
Worthless as withered weeds,
Or idlest froth amid the boundless main,

To waken doubt in one
Holding so fast by thine infinity;
So surely anchored on
The stedfast rock of immortality.

With wide-embracing love
Thy spirit animates eternal years,
Pervades and broods above,
Changes, sustains, dissolves, creates, and rears.


Though earth and man were gone,
And suns and universes ceased to be,
And Thou were left alone,
Every existence would exist in Thee.


There is not room for Death,
Nor atom that his might could render void:
Thou--THOU art Being and Breath,
And what THOU art may never be destroyed

-

Remembrance


Cold in the earth—and the deep snow piled above thee,

Far, far removed, cold in the dreary grave!

Have I forgot, my only Love, to love thee,

Severed at last by Time's all-severing wave?



Now, when alone, do my thoughts no longer hover

Over the mountains, on that northern shore,

Resting their wings where heath and fern-leaves cover

Thy noble heart forever, ever more?



Cold in the earth—and fifteen wild Decembers,

From those brown hills, have melted into spring:

Faithful, indeed, is the spirit that remembers

After such years of change and suffering!



Sweet Love of youth, forgive, if I forget thee,

While the world's tide is bearing me along;

Other desires and other hopes beset me,

Hopes which obscure, but cannot do thee wrong!



No later light has lightened up my heaven,

No second morn has ever shone for me;

All my life's bliss from thy dear life was given,

All my life's bliss is in the grave with thee.



But, when the days of golden dreams had perished,

And even Despair was powerless to destroy,

Then did I learn how existence could be cherished,

Strengthened, and fed without the aid of joy.



Then did I check the tears of useless passion—

Weaned my young soul from yearning after thine;

Sternly denied its burning wish to hasten

Down to that tomb already more than mine.



And, even yet, I dare not let it languish,

Dare not indulge in memory's rapturous pain;

Once drinking deep of that divinest anguish,

How could I seek the empty world again?




sábado, fevereiro 25, 2017

alma em lata

Você diz que tinha muitas ideias
e que isso não ajudou
um jovem precisa também de roupas bonitas
você ouviu a sua vida toda que o dinheiro é sujo
isso não é verdade
agora você quer encher a geladeira
a economia é um monte de besteiras motivacionais
e que o resto vá para o inferno
o dinheiro quer se reproduzir
você começa a sofrer para que ele aumente
o brilho, o sabor, tudo é deslumbrante
agora todas as coisas espirituais são vergonhosas
o tempo não pode ser desperdiçado
as bibliotecas estão vazias
não precisamos saber o que está acontecendo
o ócio da conversa pode descobrir coisas novas
mas palavra enche conta no banco?
e você é só você, você perde o respeito
por quem não é bom o suficiente
um dia as chaminés vieram
e a fome frutificou
aí vieram as utopias
e as pessoas foram mortas
as fantasias foram jogadas no lixo
o idealismo que piada
a humanidade mau gosto
a paz mundial é meu carro e uma promoção
as pessoas ficaram feias
a cortesia é uma bobagem
o instinto dos lobos vai nos levar longe
o problema com o ouro (belo e bom como é)?
ele deixa as pessoas meio doidas
elas vão cortar seu bosque vão mesmo
(cortaram o meu - e eu era só uma criança)
e se precisar elas comerão você aos pedaços
e a culpa será sua
e aqueles famintos deviam ter vergonha
agora as ideias já não importam
o que ocorre nas almas daqueles tão bem-sucedidos?
os bolcheviques de mercado vão engolir seu recuo e sua explicação
você não tem mais um alma
mas quanto ela poderia render?

Afonso Lima




Whitby

Ele escreve.

A cena de Fausto em que Mefistóteles está numa montanha cercado de morcegos dera muito trabalho. O gerente do teatro chega a sonhar com aquilo.

Lorde Kevin chegou à pouco em Londres e decide ir ao teatro.

Ele tinha gostado bastante do Macbeth do Lyceum Theatre. 

Conversara rapidamente com o irlandês que o administrava. Um homem interessante. Contara do sonho.

Um mês depois, resolveu distrair-se em Yorkshire e caminhava pelas ruínas da Igreja de Santa Maria.

Toda aquela situação com a histeria da contaminação e o Zola o haviam abatido. Ele o encontrara em um pequeno hotel em Londres, tendo fugido enquanto a multidão no tribunal gritava: "Traidor! Volta para os judeus!"

Encontra o homem do teatro caminhando entre os túmulos. Faz anotações.

Pergunta se não tem medo, se gosta de histórias sobrenaturais.

Comenta com ele sobre a história de Lord Byron, sobre o soldado morto na Turquia a quem é prometido o retorno à vida. Evidentemente, ele não sabe nada sobre o lorde, mas seu rosto expressa um estranhamento inquisidor.

Passam a se encontrar todos os dias.

Ele anota um nome de um jovem marinheiro, morto aos vinte anos.
O irlandês diz que sempre o impressionou a história do poeta Dante Rossetti. Ele havia enterrado a jovem esposa com o manuscrito dos poemas dedicados à ela. Os amigos o convencem a abrir o túmulo para publicar o manuscrito. A glória do autor veio daí. Dizem que, abrir o caixão, um ano depois, a moça parecia deslumbrante como se estivesse ainda viva.
O lorde lhe conta sobre um servo que também morreu muito cedo.

- Eu o encontrei com quinze anos, nas sujas ruas do subúrbio. Era belo. Eu vi uma prostituta beijando seu pescoço. Provavelmente, estava doente de sífilis. Eu gritei: "Saia! Esse homem pertence a mim". A mulher fugiu como se tivesse visto um fantasma. De fato, eu a teria matado se não fugisse. Eu me apeguei ao rapaz, ele viveu praticamente preso no seu castelo, temia que outros o vissem. Ele se apaixonou por uma criada. Por sorte, a moça adoeceu e pediu demissão, desaparecendo.

O homem olha nos olhos de Lorde Kevin e tem um estremecimento.

Tomaram chá com a mulher do gerente e sua filha mais tarde. Sua esposa era belíssima, mas fria, fora cortejada por Oscar Wilde. Conversavam sobre as viagens do lorde. Ela perguntou-lhe:

- É verdade, senhor, que na França, os radicais começam a exigir o controle do exército pelo governo republicano?

- Sim, o caso todo os está marcando como reacionários. Eu mesmo vi um clérigo na rua distribuindo panfletos nos quais se lia: "Sua mãe e sua irmã têm em você uma barreira. Você é a defesa da nação contra a infâmia da invasão estrangeira!" Mas... É o mesmo em todo o lugar. Na Rússia, na Alemanha, na França, aqui, todos querem a energia da expansão e louvam a guerra como força purificadora.

O gerente do teatro sonha.

Está sendo beijado por uma mulher.

- Saia! Esse homem pertence a mim.


Afonso Lima


sexta-feira, fevereiro 24, 2017

o sonho

na prática, o sonho não foi assim tão belo
não importa
abrimos uma porta e percebemos que tudo eram mentiras

quando os arquivos foram abertos
choramos
não importa
fomos presos e perseguidos
e ainda estamos aqui
querendo liberdade
querendo igualdade
querendo a verdade

o que importa é que acordamos
o que importa é que percebemos
o que importa é que sonhamos
nada é mais concreto que o sonho
não existe nada inevitável nesse mundo

Afonso Lima


terça-feira, fevereiro 14, 2017

Arquéolos

O lorde escreve.
Nossa tradição como filósofos naturais, médicos e oráculos remonta ao nascimento da humanidade. Agora, os alquimistas falam em ciência moderna, mas nós defendemos a civilização por séculos.
Temos uma lenda que circula desde o século IV depois de Cristo.
Um grande líder da floresta, Arquéolos, foi levado por César para ser apresentado a sábios de seu tempo, como Cícero.
Arquéolos, sendo experimentado mestre, percebeu entre os romanos nobres um imortal bebedor de sangue.
O demônio, claro, também pressentiu ter sido descoberto.
Ele tenta fugir, mas o druida o alcança e o paralisa com uma fórmula mágica.
Por sorte, um outro ser das trevas os viu e o homem foi afugentado por ele.
O imortal começou então uma campanha de propaganda na qual apresentava os druidas como bárbaros bebedores de sangue.
Conspirando na corte, conseguiu manipular os senadores para votarem uma guerra contra os druidas, um foco de revolta potencial, já que mantinham a memória do povo. Além disso, mesmo entre os soldados, o medo da magia era uma epidemia.
Assim os romanos os atacaram, para desgosto de César, e eles revidaram com maldições que mataram centenas, com a ajuda dos elementos da natureza. Ficou conhecida como a "Guerra entre a Espada e a Palavra".
Arquéolos, ao morrer, atirou sobre ele uma maldição para que ele nunca pudesse sentir o frio templo de seu coração ser aquecido pelo calor de outro coração.

Afonso Lima

Memórias de Paris

Philos Adelphos, 1840

Ouvi falar dele pelos amigos franceses que o viam perambulando pela rua mergulhado em pensamentos até alta hora da madrugada. Ele era um jovem estranho, com fascinação por livros, bibliotecas e livrarias.
Dizia-se que adorava enigmas e desejava sempre entrar na alma dos outros para adivinhar-lhes as intenções. Assim, cultuava por um lado a criatividade e, por outro, a investigação. Nos Estados Unidos, gostava de cartas, e estudou matemática, mas em Paris, parece ter se isolado numa mansão abandonada de ilustre família, com fama de mal assombrada. Passava os dias com as cortinas fechadas e só caminhava pela rua à noite.
Sua companhia eram os livros, não recebia visitas e escondeu dos conhecidos sua nova localização.
Mas o que eu tenho para contar é que, para observadores melhores que eu, esse rapaz desenvolveu o que talvez os cientistas da mente chamem de dupla personalidade.
Isso tudo foi confirmado pelo manuscrito que nos deixou. Nele, fala de um amigo, que na realidade nunca pode ser encontrado. Esse conto saiu numa revista local.
Mas o que mais me intrigou foi sua reflexão deixada em outro papel amarelado.
Eis aqui o que pensou, anotado, com certeza numa escuridão artificial feita por cortinas e iluminada por círios.

"O tipo de enredo que quero criar nunca foi visto ainda pelos humanos. Salvo talvez no caso de Édipo. Tem a ver com a capacidade imaginativa. Não significa que observando as coisas de muito perto nós as entenderemos. Pelo contrário, seria preciso recuar e imaginar as coisas mais absurdas. Por isso os artistas são cientistas de certa qualidade, mas divago.
Acho que a ambiguidade da percepção é parte de nossos julgamentos. Uma pessoa pode nos parecer de um jeito e, logo depois, seu exato oposto. Vivemos cercados de aparências. 
O tipo de enredo que pretendo criar é baseado em hipóteses (criações do não visível). Porque assim também é a vida, os fatos, como eu disse, são pouco para organizar as coisas. 
O terceiro elemento dessa fábula seria a curiosidade. Ela revelaria o que nos lança à ação, o fato de buscarmos sentido nas coisas que parecem absurdas. Ainda que ela seja essencial às histórias, aqui o passado está na frente.  
Assim, esse enredo seria não algo para chamar a atenção, mas sobre a escolha das perguntas, quando fatos passados em frente aos seus olhos podem não ser vistos. 
Quero ser o primeiro moderno a valorizar a intuição analítica, nesse novo mundo em que a observação científica apodrece entre cremes, máquinas e exércitos. Pois como já se afirmou, as perguntas enigmáticas sobre qual era o canto das sereias e qual nome Aquiles teve enquanto escondido entre as princesas não estão além de toda a conjectura".

Afonso Lima


Calendários

O lorde sentou em sua mesa e escreveu.

A sombra entrou na torre na qual os astrólogos conversavam. Um deles, percebendo, tentou chegar perto de seu amuleto para evocar uma fórmula de proteção.

O sangue caiu sobre mapas, instrumentos e papiros.

O imortal roubou a pequena esfinge dourada, supostamente resultado do amadurecimento do metal baixo, conseguida por eles. E notas escritas.

Agora podia embarcar em um veleiro que retornava da Itália depois de levar toneladas de trigo para a sábia Alexandria. Lá, César queria achar um matemático capaz de reorganizar o calendário, alguém que não manipulasse o tempo de forma a aumentar o ano dos altos funcionários amigos.

Mas isso dizia respeito a passar desapercebido pela astuta rainha, que tinha espiões por toda a parte.

E, de fato, ele foi preso.

A rainha queria saber a origem daqueles papiros e da esfinge.

Ele foi trazido à sua presença enquanto sentava no trono dourado, cercada pelos sacerdotes de Serápis.

A estátua do deus tinha a cabeça de ouro e olhos de pedras preciosas, que brilhavam até mesmo no escuro.

- O senhor conhece a lenda de Ônfale, que vestiu roupas femininas em Hércules e o manteve cativo por três anos? - perguntou a rainha levantando-se.

- Eu vim em nome de César em busca de um matemático - disse o imortal.

- Entendo... César prefere não ter de perguntar à sua vassala... Ouvi dizer que o calendário lunar está em desacordo com as estações.

Seus olhos negros brilharam.

- Mas existe algo no senhor que me deixa intrigada... Será que o senhor conhece o segredo do espírito do mundo capaz de preservar a vida?

Nesse momento, o prisioneiro rompeu as correntes e, como um vento furioso, fez jorrar o sangue de todos os sacerdotes.

Cleópatra ficou pálida e sentou-se. Ele teria preferido não mostrar-se.

- Parece que os imortais de fato existem. Sogístenes, meu melhor matemático será enviado com o senhor. Ele vem estudando o Sol há décadas. Se estou certa, um jovem de lábios grossos, cabelos ondulados e traseiro grande será bem-vindo em seu quarto. Aqui, a penetração não impede a cidadania de nenhum jovem. Eu nunca mais andarei sem um Tyet.

Ela fez sinal para que as servas limpassem aquilo tudo. 

Dois dias depois, ele voltava para Roma com o matemático.

Afonso Lima
 

segunda-feira, fevereiro 13, 2017

O fruto

Ela se aproximou da pequena porta verde. Ela caminhou fazendo barulho no assoalho. Estava tudo podre.
A casa, abandonada há anos, era acompanhada por essa lenda. Um ser maligno se apoderara da casa e fizera o pai ferir seus próprios filhos. Podia-se conseguir o que se queria invocando o ser nessa porta.
E ela queria muito. Queria matar o pai do seu filho.
Como ele pudera? Transar com ela atrás de um muro e depois, quando ela contou estar grávida, ter lhe dado um soco e chamado de vadia?
Por alguns minutos ela pensou estar sozinha falando para o nada.
Então, a porta abriu.
Ela viu apenas um espelho sujo, no qual uma aranha de longas patas correu, escondendo-se.
A luz da lua caía sobre o chão empoeirado do porão, ela pode ver seu rosto.
- Vingança. Eu quero vingança - ela disse.
A porta bateu, gritou involuntariamente.
No espelho, por uma fração de segundo, um bebê com o rosto estranhamente adulto e pés que pareciam garras.

Afonso Lima

sábado, fevereiro 11, 2017

Metal H

Por que foram atacadas as milícias de empresas do reino norte? É isso que os jornais deviam perguntar, disse o ativista à rádio estrangeira. 
Ele desapareceria horas depois. 
A população lançara bombas no bairro dos forasteiros, e uma base de milícia da empresa XOR também fora alvo, matando dois mercenários. 
Eles ajudavam à casta dominante a manter a extração do metal H, que alimentava a economia do norte. 

*
Alguns décadas antes, havia sido patrocinada pelo norte a guerra por grupos extremistas para abalar o "Continente Inimigo". Uma armadilha. 
Os guerreiros continuaram armados e consideraram sacrilégio uma invasão posterior no solo santo. Acabaram atacando os antigos aliados. 
*
Há cinquenta anos, um governo democrático fora removido. O nacionalismo foi seu crime. Uma ditadura se alastrou, permitindo acesso ao metal. Correntes extremistas fizeram uma revolução.  

*
O presidente do norte fez seu primeiro milhão com ajuda de seus amigos exportadores de metal H. As agências foram proibidas de investigar os extremistas internacionais. 
Acho que não queremos saber a verdade, disse um agente anônimo.

Afonso Lima

terça-feira, fevereiro 07, 2017

O processo legal

- Mas o senhor não tem provas contra mim?
- Na colônia a lei comum não se aplica.
- Eu sou professor.
- Foi declarado um combatente inimigo.
Ele levava livros na pasta, outra língua, foram queimados. Ele ligou para o consulado. 
- Eles disseram que se eu me declarar culpado e assinar uma declaração, não serei preso preventivamente e responderei ao processo por "laços terroristas suspeitos" em liberdade, apenas indo depor diariamente no Departamento de Segurança Interior. 
- Não assine nada!, disse o homem do outro lado da linha. 
O cônsul veio correndo, tarde demais. 
Foram colocados em aviões e andaram por nove cidades sem terem acesso a um advogado. 
Na colônia, todos os funcionários eram brancos. Gostavam de jazz e gim. Iam à missa todo o dia.  
Os combatentes inimigos não tomavam banho quente. Os combatentes inimigos comiam pouco. Os combatentes inimigos não ligavam para os parentes. Os combatentes inimigos dormiam com luz acesa. Os combatentes inimigos era interrogados por horas. Os combatentes inimigos eram surrados. Os combatentes inimigos podiam ter os pés e mãos algemados. As filhas dos combatentes inimigos tinham medo e ódio. Os combatentes inimigos podiam morrer. 
- Qual o meu crime? Qual o meu crime? - ele gritava enquanto insetos eram colocados em seu corpo. 


Afonso Lima





canção do sapo aquecido

sapo fernando disse
pra sapo mateus
o sapo andava de noite
ia longe ia longe

sapo mateus respondeu:
eu tinha uma namorada
na balada na balada
agora não tem mais nada
na estrada na estrada

eles querem andar de carro
sai caro sai caro

Afonso Lima

domingo, fevereiro 05, 2017

vende-se

meu tempo não é de rima
bacaninha
minha letra no tempo
do corte
o prefeito dinheiro
quer novo ritmo
já era
amor estrela e poesia
era de nada de graça e cinza
minha letra é pura gasolina

o buraco tá mais fundo
o prefeito mais na foto
o veneno mais na água
fura a mentira
lavada na alma

meu tempo não é de mãos dadas
minha letra no tempo do mando
pele ouro língua ouro
verde, morte ouro
o poema calcula
era sem rima
gasolina


Afonso Lima

quinta-feira, fevereiro 02, 2017

Pais e filhos

"Hoje, 98% dos municípios brasileiros dizem possuir algum dependente da droga... Segundo o estudo, 80% dos usuários de crack no País são homens, não brancos (negros ou pardos), sem ensino médio e sem emprego ou renda fixa. (01/03/2015 - Carta Capital)
"Chega a 465% de aumento no número de apreensões por tráfico em dez anos"  (Zero Hora)
A capital gaúcha está em segundo lugar entre as cidades com mais dependentes químicos, me diz alguém.
Observo o número de homens pobres que vagam pela cidade, miseráveis, ao lado das avenidas, nos viadutos, nos gramados. 
Um motorista do Uber fala agitadamente, não sabe se deve abandonar o filho, a nova mulher insiste. Ela diz que o sofrimento nunca vai parar.  
Um taxista diz que tem de sustentar o filho, a mulher e seu filho, que ele tem 20 anos e já se internou três vezes, o aluguel tem de ser menos que um salário mínimo, mas isso só tem nas vilas, um amigo liga, chama pra uma festa, bebe e daí já era, ele diz, na última casa vendeu até o fogão à lenha do dono. Sei que meu filho é doente, mas fico louco quando ele vende um tênis novo de marca dado pela mãe e seis pessoas comem a cesta básica que nós damos a ele, diz. Um dia eu peguei uns caras, fomos até uma vila, eles tinham um pacote nas mãos. Depois de algumas vezes, percebei que o pacote era dinheiro que juntam dos dependentes na rua, alguém vende por ali, depois levam a uma loja qualquer. Um deles disse, se o fulano estivesse aqui eu apagava, era um que está roubando a boca deles. O tio tá trincado, diziam, porque estava ouvindo Marley. Se ele soubesse o quanto já lutei contra essa merda. 
Contam-me o caso de um casal de namorados que para de carro num sinal. O namorado dá algumas moedas a um morador de rua. A moça começa a chorar. É seu pai. 

Afonso Lima