O
Beckett de “Murphy” (1938) é um crítico do século XIX, um
modernista semelhante à Joyce que torce os eixos da prosa, mas ainda
não os tritura. Para que o autor fosse visto apenas como um “Beckett
inciante”, seria preciso um olhar teleológico, assim como a ideia
de que o modernismo é uma única linha em direção ao império da
forma; importa saber quais questões guiam cada momento, os recursos
usados, os achados que tornam o material rico e potente.
Murphy
é um “solipcista exausto”, que pretende “o mínimo para
sobreviver”, que vive de “pequenas somas de caridade” e deseja
apenas “o sonho franco da criança, do espermário ao crematório”.
O
que o texto nos apresenta não é um enredo, apesar dos movimentos de
um “agregado complexo reunido sob a unidade de um nome” como quer
Anne Ubersfeld (p. 73), também não é um caráter ao qual possamos
nos apegar, com o qual possamos nos preocupar dentro do manter da
crença, na consciência do
artifício, com o destino do ficcional personagem.
Antes,
são contínuos jogos de linguagem, paródias e inusitadas
apresentações de personagens e situações, que causam contínua
surpresa e atenção.
Que recursos são usados se não a identificação com o personagem, a causalidade e o suspense oriundo da coerência?
Que recursos são usados se não a identificação com o personagem, a causalidade e o suspense oriundo da coerência?
Um
dos mais interessantes é o uso de imagens atratoras, carregadas de
simbologia, figuras que se destacam do fundo opaco distanciado de
experimentalismo – tão bem expressos na descrição em tabela da
personagem Célia e na irônica referência da relação entre
silogismos na escolástica – BAR/BA/RA (“como Murphy tinha tantas
vezes demonstrado a ela em Barbara, Baccardi e Baroko”).
Como
imagens atratoras funcionam o tetraktys pitagórico, o livro "A cidade do Sol", de Tommaso Campanella e as referências astrológicas.
O que sustenta a ironia fria é um calor buscado nos clássicos e na
antiguidade. De certa forma, o passado é usado pela sua ressonância
emocional, enquanto o contexto mágico-religioso que o constituía é
dado como morto.
As
qualidades que surgem são o ritmo, o contraponto, a síntese-surpresa
(“- Não consigo entender o que as mulheres veem em Murphy... - É
a sua... - Sua qualidade cirúrgica – disse Wylie”). Esses
recursos incluem o jogo entre presente de uma narração e presente
do ouvinte-personagem, criando choques de percepção – como no
trecho em que Célia, a amada, descreve seu primeiro encontro com o
enamorado Murphy ao amigo Sr. Kelly: “Célia acostou-se a ele da
melhor forma – Menina infeliz! - disse o senhor Kelly – de modo
que dali saíram caminhando...”
Aqui
começa a transformação do sujeito autônomo em camadas de pontos
de vista, personagens-valise nos quais o centro está em toda a parte
e não há circunferência.
Vejamos
como Balzac apresenta a Sra. Grandet no seu livro de 1833: “Uma
docura angélica, uma resignação de inseto judiado pelas crianças,
uma piedade rara, um inalterável equilíbrio de gênio, um bom
coração, faziam-na universalmente lastimada e respeitada”.
Na
peça “Casa”, de Richard Maxwell, de 1998, o
personagem “Mãe” diz, depois da metade do texto, quando ainda
quase nada sabemos sobre os personagens:
MÃE – Meu Deus. Meu Deus. Meu
marido está morto. O que vai acontecer com a casa? E com a pensão
dele? Eu sei que ele tinha uma pensão, acho que nós temos direito a
ela. Tenho que olhar os documentos. Eu sei que deixei em algum lugar,
preciso procurar. Isto é bom, porque nós vamos precisar, e você
ainda é menor. Trabalhar para o governo traz algumas vantagens.
Apesar do fato de que você precisar se representar. Você tem que
dizer a eles quem você é. Eu acho que posso dizer a eles quem eu
sou. Você precisa dizer a eles. Quem você é. Senão você não tem
existe. Eu acho.
Dificilmente, aqui vamos encontrar os temas do conflito, da ação e da causalidade
que dão estrutura ao drama tradicional. Nesta mímese bizarra, se
mantém um traço de realismo na indicação de “personagens”
(Mãe, Filho, Pai, Mike) e no simulacro de ambiente (“PAI – Gosto
de onde vivemos. A casa.”)
É
o estranhamento de um universo aparentemente familiar que cria o
suspense. O interesse da peça se dá mais pelo relevo da linguagem,
seu absurdo, e pelo fato mesmo de que seus diálogos são opacos a
qualquer caracterização holística, revelando antes traços de
neuroses e manias. (Também aqui há intertextualidade com um
clássico, Hamlet). Algo desse modo de uso do texto está em Murphy,
no qual não é ainda absoluta a descrença na capacidade expressiva
da palavra (os “meios” para os “fins”).
Supomos
que a tensão clássica do romance se dá pelo mecanismo da emoção
correndo pela lógica da unidade – na psicologia, na consequência,
na relação entre narrador e leitor. Grosso modo, o suspense se dá
pela fórmula - “o que vai ocorrer ao personagem?” ou, mais
modernamente, “o que mais saberei sobre essa personagem?”
Propusemos que, em “Murphy”, o interesse ou a tensão se dá pela
curiosidade sobre a linguagem, seu modo de operação, os recursos
usados para operar esse personagem, marionete e autor singular do
próprio absurdo. ("Cedo ou tarde, todas as marionetes deste livro choramingam, menos Murphy, que não é uma marionete").
De
certa forma o que se está mostrando é mais o processo (os
“bastidores”), a exposição da teatralidade, e, portanto, o
fenômeno do pensar. Isso nos lembra as operações de Piscator e
Brecht. ("A passagem acima foi cuidadosamente calculada para perverter o leitor cultivado").
Erwin
Piscator (1893 – 1966) foi um diretor que influenciou profundamente
a dramaturgia por meio de suas encenações e por tratar as causas
sociais como tema. Afirma, no seu texto Teatro político, de
1918, realizar
“o seu labor a serviço da luta do proletariado”. Ele
pesquisa os “efeitos prejudiciais do capitalismo para a alma
do homem”. (idem; grifo meu) Não busca mais uma dramaturgia do “eu
- representação dos conflitos entre indivíduos e ambiente e
indivíduo - mas mostrar diretamente as engrenagens e estruturas (a
lógica subjacente) de problemas novos em todas as esferas: na vida
social, na justiça, nos conhecimentos científicos e filosóficos...
Brecht,
nos seus “experimentos sociológicos”, propunha uma espécie de
análise científica do objeto personagem, observando os modos de
operação, “uma superposição entre o que se chamava caráter
'culinário' do teatro e a crítica desse mesmo caráter. (Pasta, p.
92)
Ao
sujeito descentrado, corresponde uma estrutura estranha, ela mesma,
pelo menos montagem:
Contra a “peça bem feita”, último
avatar do “belo animal“ aristotélico, o devir rapsódico do
teatro contemporâneo coloca em questão a própria ideia de
composição: transformada em montagem de arquivos de documentário
em Weiss, justaposição de fragmentos narrativos e dramáticos em A
missão de Müller, a escrita teatral obedece a uma lógica de
decomposição. (Sarrazac , p. 42).
Podemos
imaginar que o tipo ideal do século XIX era o indivíduo
empreendedor, imaginário alimentado pela economia de Malthus –
poucos recursos para muitos indivíduos, de modo que a vida seria uma
forma de competição. No caso do teatro, ainda o “belo animal”
aristotélico obedece a um encadeamento lógico, “tornada unidade
de ação na época clássica” (p.42)
Nietzsche
vai atacar o darwinismo justamente por ver nele um produto da moral
cristã, e propor a natureza como abundância e absurdo desperdício,
e a ideia de evolução e teleologia como sintomas. Em seu lugar, ele
vê o contínuo declínio das formas de vida, o “orgânico como
degeneração”. (Barrenechea, p. 61-64)
O
ideal do sujeito estável, confiante nas leis da ciência moderna e
na religião, que dão unidade de percepção e parâmetros para a
ação, o sujeito que vive a culpa e o conflito e alimenta a
autoreflexão, bucando seu lugar na sociedade, começa a declinar.
Como
afirma Italo Calvino: “A realidade do mundo se apresenta a nossos
olhos múltipla, espinhosa, com estratos densamente sobrepostos”.
(Calvino, 2007, p. 210) Nessa situação, tanto a unidade de
percepção, quanto os parâmetros para a ação não são claros, e
uma posição solipsista pode ser um sintoma, uma reação
lógica, uma criação (a “autodestruição” criadora de
Nietzsche).
Impossível
não lembrar dos exemplos de Barteleby, de Heman Melville, que, em
meio ao trabalho que “urgia”, toma distância, transforma o outro
em “estátuas de sal” pelo estranhamento - “prevalecia com ele
alguma suprema consideração que o obrigava a responder como fazia”.
Allan Poe, no seu conto “A carta roubada”, mostra uma polícia
“perseverante, engenhosa, astuta, e perfeitamente versada nos
conhecimentos do seu ofício” que, no entanto, não consegue avaliar
o raciocínio do “oponente”. O fazer não é o bastante; o como e
o por que surgem novamente, a ciência não pode ser o único modelo
da sociedade: “Os axiomas da matemática não são axiomas de
verdade geral. O que é uma verdade de relação, de forma e
quantidade, é muitas vezes enormemente falso com respeito à moral”.
Da
mesma forma a clínica do olhar de Charcot, esse “fotógrafo da
histeria” como o chama Saurí, em Salpetrière, será desafiada
pelo recuo ao ouvir de Freud. Charcot afirmava que não se ligava às
teorias preconcebidas, e sim “àquilo que surge da experiência,
como se pudesse existir um olhar neutro e objetivo, e como se a sua
fosse uma mirada ingênua”. (Alonso e Fucks, p. 34) Com Freud a
histérica deixa de fornecer “quadros vivos” e obedecer à leis
da ação e reação, da exposição num mecanismo habitual
(movimentos epileptiformes, alucinações, etc) e passa a ser
analista de si mesma, a elaborar situações de grande carga afetiva,
nas quais a descarga era impossível de acordo com os códigos
vigentes.
Agora
interessa no personagem seu modo particular, sua filosofia de vida,
sua avaliação do mundo (espelhado no fato de Neary, amigo e rival
de Murphy, ser um “pitagórico”, que estuda a “harmonia” ou o
“acorde”). Ele prega a não ação (é impossível “deduzir o
que você é a partir do que você faz”), ele nem imagina “lutar”,
ele prefere “não mudar”. Interessa interrogar o “real” (até
mesmo através do olhar periscópico joyciano, que adota as mais
variadas formas) e saber que densidades pode criar a arte para
questionar os hábitos de percepção.
Em
“Murphy”, não há a unidade da identificação, o
narrador-personagem que leva o leitor-personagem a pensar como o
personagem, mas há o narrador, o vazio e o objeto. Talvez esse seja
o conceito de ironia no primeiro
Beckett. “Pois o problema da ciência não pode ser
reconhecido no terreno da ciência” - diria Nietzsche no
“Nascimento da tragédia”.
Afonso
Lima
Alonso,
Silvia e Fucks, Pablo. Histeria. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2004.
Barrenechea,
Miguel [et. al.] Nietzsche e as ciências. Rio de Janeiro:
7Letras, 2011.
Beckett,
Samuel. Murphy. Tradução, texto e notas: Fábio de Souza
Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
Pasta,
José Antônio. Trabalho de Brecht: breve introdução ao
estudo de uma classicidade contemporânea. São Paulo: Duas
Cidades/Ed. 34, 2010.
Sarrazac, Jean-Pierre
(org) Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo:
Cosac Naify, 2012.
Ubersfeld, Anne. Para
ler o teatro. São Paulo: Perspectiva,
2010.
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