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Escravocratas de mármore e o futuro da paz

"Sim, as estátuas de Gaio Calígula foram derrubadas e desfiguradas, mas isso conferiu algum benefício a Roma? Tornamo-nos menos brutais e mais justos? Podeis pôr abaixo estátuas, mas não podeis eliminar vosso passado. A única coisa que podeis em relação ao passado é com ele aprender." 
(https://aldodinucci.blogspot.com/)

"Fatia do 1% mais rico no Brasil tem 50% de toda riqueza do país". (Bloomberg. 22/06/2021)


A paz necessita da prosperidade mínima geral. A verdadeira harmonia tem relação com a justiça. Queimar em nome do bem nunca é legal, mas civilização é prevenção. Que canais nós criamos para aceitar e refletir a discordância? Qual a pré-história do fogo? Que fazer para evitar que uma parte se sinta agredida pela agressão ao agressor?

Antes de mais nada, é preciso lembrar que tudo que está consolidado foi criado, que há escolhas e planos em tudo que nós herdamos. Quando não há decisões coletivas e debate público, o que há é a imposição dos valores dos poderosos de ontem. O cidadão universitário branco pouco informado se vê na imagem do caçador de gente. A estátua é o apagamento da caça, da dor que a história esconde. 

Óbvio que, politicamente, é sempre mais fácil colher os louros da ignorância e embarcar no senso comum. 

Paulo César Garcez Marins, professor do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP) - "Os sertanistas, vistos como bárbaros por grande parte dos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sediado no Rio de Janeiro, e por artistas cariocas, foram progressivamente enaltecidos nos círculos literários e intelectuais paulistas como líderes do processo de construção territorial do Brasil". (BBC)

Nenhuma sociedade deseja a guerra. É preciso ver além do medo, como um sintoma social, e perguntar que impediu o debate. Porque vemos muito o "discurso do monumento", que lembra muito o discurso de que "protestos atrapalham o trânsito", ou mesmo aquilo que se dizia há poucos anos sobre ser impossível fechar a Avenida Paulista aos domingos por questões de "saúde pública", dado o número de hospitais na região (era apenas para a classe média poder circular de carro). Como não haverá fogo se as vias de representações políticas e a comunicação - mesmo antes da ascensão do fascismo de Estado - parecem totalmente controladas? 

Também não precisamos de gente nos dizendo que o bandeirante em questão não era tão mau (mais do mesmo: livros servindo de narcótico, vide eugenia belle époque em jornais e universidades). Não se trata de uma figura em si, mas do que esse grupo representa. Representa o uso da terra e a objetificação dos povos originários por sertanistas dispostos a tudo. Significa a dissolução de disputas tribais endogâmicas por um massacre baseado em hierarquias de raça. "Chega de louvarmos assassinos do povo" é a mensagem. A sociedade brasileira mudou: mais pessoas têm acesso à livros, universidades e debates que circulam no mundo. 

Dr Shawn Sobers, University of the West of England - "At the same time, the anti-racist movement isn't about statues. It's trying to eradicate racism from society and bring equality where there's racial disparity which cuts across economic divides... But statues are a symbol of how seriously our cities in Britain are actually taking these issues." (BBC)

Prefeita Nikuyah Walker - “ Derrubar a estátua é um pequeno passo em direção ao objetivo de ajudar Charlottesville, na Virgínia e nos Estados Unidos, a lutar contra o pecado de estar disposto a destruir os negros para obter ganhos econômicos”. (Democracy Now!)

Suzane Jardim, historiadora - “A memória negra foi varrida, como a memória indígena foi varrida e ninguém questionou (...) A gente sabe que não tem uma estátua de Zeferina do Quilombo do Urubu, por exemplo.” (Brasil de Fato )

Por que a República não conseguiu revisar nossos valores - por que ainda pensamos como nos anos 1970? Existe todo um trabalho de identificação com a nobreza promovido pelos meios de comunicação. A dor e o sofrimento do homem branco rico são exaltados até que toda a classe média se desfaça em prantos. São nossos líderes, não podem ser criticados. A imagem do fogo é disseminada como pânico. Criamos uma sociedade disposta a perdoar tudo, a paz como violência. O uso do medo como fator de silenciamento. O resultado de uma opressão contínua sempre é o pior. 

Quem defende esses "heróis da pátria" não sabe quem são - ou, pior, acha que a eugenia é natural. O espanto nasce numa auto-percepção como continuador de nobres empreendedores? A narrativa histórica é sempre viva, é sempre posição política. No seu melhor momento, é a revelação de uma realidade sufocada, a correção de uma mitologia opressora, a complexa rede de contradições no lugar de uma serena falsidade. Esse monumento não poderia estar aí porque o que ele está dizendo é que a república é dos opressores. É a mesma lógica que impede que tenhamos ruas com nomes de nazistas - seus valores dividem a sociedade entre pessoas dignas e objetos descartáveis, e não podem ser tolerados. Precisamos falar do monopólio do discurso e do ódio racial que foi naturalizado em nossas estruturas. 

Precisamos pensar como um governador diz, como Geraldo Alckmin (PSDB), que projetos de sociologia seriam “pesquisa inútil”. E como pode ter falado em “máfia das universidades sugando dinheiro público”.

Porque pouco tem sido feito para impedir que o trabalhador sem escolaridade seja alvo do pânico. O projeto de destruição da universidade é um plano para acabar com a reflexão pública e o confronto de argumentos, o que sustenta a república, porque assim fica mais fácil a massa perseguir opositores e votar contra os imigrantes:

"Atualmente fixadas na mira estão as disciplinas de humanidades - artes, línguas e ciências sociais - que sofreram cortes drásticos de financiamento e foram ignoradas por um governo empenhado em promover o que é moderno e gerador de receitas (ciência, tecnologia, engenharia, matemática)." (The Guardian)

A estátua sofre porque as opressões continuam. A discussão não é "quem foi ele" (apenas), mas quem somos nós. O que aceitamos que é o país. Um fascista é alguém incapaz de mudar. Por que nossos governantes ainda se enxergam em assassinos de não-brancos? Por que os eleitos escolhem o racismo colonial e não o efetivar da Constituição? 

O fundamental é termos espaços nos quais as discussões possam ocorrer: não apenas através de "representantes" alimentados por caras campanhas, não apenas com o acionar da Justiça. 

Que o Parque seja marcado por bárbaros é uma sinalização para que o cidadão se veja como parte de um povo glorioso que superou outros povos? Sou à favor de criar o museu das velharias eugenistas. Vamos mudar nosso passado, porque mudamos quando entendemos. Há sempre o perigo do libertador de hoje ser o tirano de amanhã claro. Agora, a rebelião nasce do esquecimento. 

Da incompreensão do nosso erro. Se tivermos sorte, não será olho por olho, não será destruição, mas contextualização, abertura a novos mundos, acordo entre iguais. A forma de acabar com a violência é aceitar a verdade do outro, e só isso pode romper o ciclo de nossa sociedade erguida em sangue. 

Ajr

https://www.bbc.com/news/uk-england-bristol-57350650

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53116270

https://www.democracynow.org/2021/7/12/headlines/charlottesville_virginia_removes_racist_statues_after_protracted_legal_battle

https://www.brasildefato.com.br/2020/06/15/o-que-significa-retirar-estatuas-de-escravocratas-do-espaco-publico

https://www.theguardian.com/education/2015/mar/29/war-against-humanities-at-britains-universities