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segunda-feira, dezembro 11, 2017

Sobre "Assassinato no Expresso Oriente", o filme

Quando soube da nova versão do filme, imaginei logo que haveria um grupo de fãs daqueles que não querem um Poirot diferente, que não aceitam uma certa aceleração do ritmo típica dos tempos atuais, que acham que o livro tem de se repetir no filme, etc...

Mas jamais pensei que eu mesmo ficaria incomodado. O filme é alto astral, o diretor-protagonista carismático, a direção de arte sedutora, tudo funciona... E... Quando no texto se lê "um bigode enrolado para cima" e "um homenzinho de enormes bigodes", na tela se vê um monte de pelos grisalhos até a orelha, algo que não podia parar de me lembrar um cachorro.

O que sonhamos com esse tipo de filme não tem nada a ver com "quem fez isso?" (Whodunnit?) - tem a ver com um clima de nostalgia, a observação atenta de psicologias fugidias, a elegância irônica do detetive, a permissão da crença - aceitar o jogo, sabendo que é fantasia (e não a suspensão da descrença) - e a catarse com o fato de que as aparências podem ocultar uma estrutura invisível.

Quero esse trem e esse oriente porque quero outro modo de ver. O surto atual por coisas "de época" talvez seja porque queremos "quem fez isso" na sociedade atomizada, a história nos ajuda a duvidar - existe algo que nos foi ocultado.

Isso não casa bem com filme de ação. A aceleração do início é tamanha que eu fiquei sonolento... Um monte de coisas é coisa nenhuma. Pode ser que o caleidoscópio seja porque "as pessoas não vão aguentar duas horas em dois vagões", mas Lumet filmou 12 homens numa mesa... (Entretanto a maioria das pessoas com quem falei achou tudo justificável e aceito que vai sair satisfeita).

Infelizmente, o visual e o ritmo que deveriam modernizar geraram ruído: Poirot tem uns momentos Indiana Jones, corre atrás de suspeitos, tem pensamentos românticos e sua "esquisitice" é um problema Monk com simetria (só para ter um final engraçadinho). Lá se foi aquela lenta insinuação e apresentação que cria um clima. 

A fotografia incrível de Istambul e de Israel justificariam alguma mudança, mas nada explica uma cena inteira na padaria para mostrar os pães; o personagem do dono da companhia de trem (ou seu sobrinho!), que tem de ser agora um jovem galã; a extensão dispersiva de uma cena com um americano suspeito por que ele afinal é Johnny Deep, e não se vai convidar Johnny Deep para falar apenas o necessário. Ele não pode sequer mostrar uma arma (que está usando por medo, no livro) sem parecer um gangster ameaçador...

O resultado é que a introdução, que no filme de 1974 de Sidney Lumet, com roteiro de Paul Dehn, acontece em 30 minutos (até o assassinato), uma perfeita "apresentação de primeiro ato", nessa versão é um show de luzes longuíssimo. A narrativa ágil da escritora (onde cada palavra tem uma função na estrutura) ao mesmo tempo se estende e se picota numa edição nervosa...

Acho que as histórias de Agatha Christie são muito mais do que entretenimento ligeiro, são como Dickens domesticado, primeiro porque ela sabe exatamente o que quer e cria um cenário claro de modo absolutamente sintético (enquanto o próprio nos mostra mil texturas emocionais, ideias em oposição, cenários de ópera, nos mergulha em tantos universos nas mil páginas de seus fantásticos universos...). A força da concretude nos passa a mensagem de que é um ambiente autônomo, ela vai nos conduzir a algo que não sabemos.

A precisão das palavras e a clareza do universo nos lembra que a linguagem também oferece essas sínteses de mundo para compreendê-lo. É um alívio uma fotografia clara, porque outras sínteses coerentes com nossa experiência podem ser feitas e o mundo se torna menos confuso.

Essa certeza nos desperta o desejo de conhecimento, instinto de sobrevivência de saber mais sobre o mundo, porque pode ser que desconfiemos que, no fundo, conceitos são ferramentas de criação. Como diz Orham Pamuk, no seu ensaio, em nós vive o leitor ingênuo (que mergulha) e o sentimental (que sabe da ilusão). Ainda vale pensar se não desejamos entrar num outro nível da existência, menos ligado à respostas aos obstáculos, o relaxamento proporcionado por esse ser e não ser, que sabemos ser artifício, intriga, distância dos jogos de poder e da necessidade de linguagem funcional objetiva.

Por outro lado, usa um dos métodos humanos para conhecer - analisar percepções confusas e propor teorias. ("Poirot, interpretando corretamente o espírito inglês, sabia o que o outro pensara: 'Outro estrangeiro detestável"). Algumas vezes o caos de fatos visível e o paradoxo podem ser rearrumados com uma hipótese que os coloque em perspectiva: "O assassino era um homem de grande força, era fraco, era uma mulher, era destro, era canhoto..."

O sub-texto é algo fundamental nesse processo. As psicologias nunca são dadas senão por gestos, ironias, modulações de voz. Depois de um café da manhã silencioso como estranhos pouco simpáticos, um casal é visto murmurando segredos no corredor; a moça diz: - Quieto! Por favor, quieto! Poirot ouviu e "recordaria esse pensamento mais tarde". Não são dadas pistas para que você descubra junto (o método de Agatha é o "deus ex machina", ela sabe algo que você não sabe), mas ela pisca o tempo todo para o leitor e ele exercita continuamente sua capacidade de ler sinais ("as sobrancelhas de Poirot se levantaram"). É a diferença entre ambíguos olhares e cômicas caricaturas...

"É a psicologia que estou buscando", diz o detetive. De fato, a análise do caráter nos envolve. O personagem tem de manter o "possível assassino" e o inocente colocado sob suspeita. No filme de Lumet, Anthony Perkins faz o perfeito secretário "com algo a esconder", agitado e olhando furtivamente, mesmo que não seja exatamente o rapaz "direto e honesto" visto pelo belga no livro. 

"Não dá pra reclamar de falta de pistas nessa caso" - reclama Poirot. "Tal como acontece nos livros e nos filmes". Ele tem, na cabine onde o cadáver jaz, tudo aquilo que se oferece como "óbvio" - são lenços, um relógio quebrado, o limpador de cachimbo - e terá de negar a aparência para afirmar a realidade, um pouco como um físico moderno. Ele se apega a fósforos que podem ter queimado um "papel incriminador".

Mas nossa experiência da vida é assim, cheia de ambiguidades, tentamos entender o que ocorre e nos enganamos frequentemente. Poderíamos dizer que esses livros nos levam a uma acomodação quando a ordem é restaurada e a lei oculta é desvendada, mas a angústia de tantas personalidades sob suspeita, ambíguas, escorregadias, não é aplacada. Se esse homenzinho "de aspecto ridículo", que "ninguém jamais levaria à sério" não nos desse a esperança artificial e frágil da inteligência prevendo e regulando o caos, seriam livros de terror. 

O humor do livro também aparece pouco no filme, ou seja, as frases cortantes e rápidas (por exemplo, o secretário do misterioso americano confunde Poirot com o costureiro francês Poiret); ou eu deveria dizer o contrário, que o filme vende desde o início um clima de disneylândia anos 1930, que nos faz rir com um conde ninja, perdendo o realismo mais profundo. O ceticismo e a crítica fina da pretensão, da selvageria, mergulham na névoa dessa elegância. O show não pode parar... 

Em 1974 temos pelo menos duas piadas muito engraçadas. Aqui tudo está meio ofuscado pelo brilho. Judi Dench, um fantasma de bastidor, merecia mais se seu personagem é uma princesa que fala num "tom claro, cortês, mas completamente autocrático".

Branagh acerta muito ao dar ao olhar o presente sugerido como neve, mar, catedral e orientalismo. Mas ele também foi quem colocou Hamlet num castelo branco do século XVIII só para ter o prazer de dizer "não ser" em frente a espelhos.

Nabokov, analisando Madame Bovary, vai nos dizer que colocarmo-nos no lugar de um e outro personagem é algo infantil, um modo emocional de ler mal; talvez a realidade mais crua seja que desvendar as pistas do jogo social (ou cósmico) seja a nossa experiência como espécie desde a luta contra os mamutes até o ler do mapa da cidade de Balzac.

Talvez Nabokov explique mal a personagem por sua leitura errada e Flaubert explique mal a mulher que se matou depois do adultério; a própria teia romântica que "explica" a morte de Bovary por sua alma de donzela medieval venha do fato de que os homens precisam atribuir a liberdade das mulheres a alguma influência hipnótica externa irresistível: aos livros. Talvez não seja a identificação, mas o ódio que tenham levado ao suicídio da verdadeira Bovary. 

Claro que o filme é agradável e a maioria das pessoas vai sair contente. Agora, não custa perguntar o que faz um romance policial entre o crime e o "foi ele". E a resposta é: nos fala de história, nos apresenta as sombras, investiga um mundo. Do capítulo 1 ao 13 da segunda parte do livro, temos depoimentos. Não seria possível aqui "apenas entrevistas"; não estamos tão focados nesse crime, a direção de arte parece nos atrair mais. Por sorte, o ritmo melhora depois da apresentação frenética e, se esquecermos o bigode Shih Tzu de Kenneth Branagh, podemos mergulhar nesse sonho. E o filme começa a andar quando o ritmo serena. Por fim podemos nos deliciar com essas personalidades (mesmo que sem as sutilezas e sem conseguirmos definir tanto cada um).  

É evidente que um filme não vai chegar nos detalhes como um livro, ainda mais um desses que analisa motivo, álibi, circunstâncias suspeitas para cada personagem. Mas talvez a tensão dos anos 1930 tenha se diluído na mítica BritâniaTur. Mesmo sendo competente, parece que uma trama que encobre uma visão sobre a vida pode ser uma visão de mundo em que a trama bem feita quase desvenda tudo, a começar pela Michelle Pfeiffer fazendo Michelle Pfeiffer. 

Apesar disso, no fim o filme é muito bom e agrada. Talvez eu esteja apenas um nostálgico das análises detalhadas em trens parados no tempo, um crente na complexidade humana...

Afonso Junior Ferreira de Lima

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