“Você vai se distanciar de seu povo. Samba, daí, nunca mais.” É algo assim que Joana, a Medéia do morro, diz a Jasão para amaldiçoá-lo. Há alguma coisa dessa verdade na montagem de Gota d´Água que assisti ontem, em direção de João Fonseca,com Izabella Bicalho e Lucci Ferreira como protagonistas.
A peça começa com um samba legal, depois outro samba legal. Ok, é Chico Chic, microfone, palcão e tal. Outro samba legal, e outro. É tudo muito perfeito, mpb pra gringo ver, dá um incômodo. Ok, não é tão raiz quanto o outro Chico, mas vai ser bom.
Aí começam os sambas em que você não entende o som. Será o cara que não canta bem ou a acústica? Começam caras e bocas, marcação de cena marcadíssima, você começa a pensar se nessa favela chic precisa mesmo um negão com a camisa do Flamengo, uma negra com roupa de oncinha e troço na cabeça e umas mulheres vestidas de anos 50. (A princesa de Jasão é a Emília). Você enxerga, simplesmente, a sombra do holofote no cenário. Os rostos ficam na penumbra e a luz foca outra coisa. Tem um Creonte excelente que salva tudo, um bom Mestre (apagado pelo diretor), um Jasão bem forte e expressivo, mais vivo que o último que assisti. Dá o intervalo. Calma: nada pode arruinar a cena fantástica de Joana matando os filhos.
Eu dou nota sete, tem música colorida e boas dancinhas. Uma amiga, com cara assustada, diz: “Meu Deus, eles estão muito frios. É muito comercial”. Outro responde: “Estão completamente distantes desses personagens, não se identificam”. Parece realmente impossível imaginar essa Joana no morro e não no Shopping. Sim, ela tem um vozeirão. Em um dado momento da canção, quando diz: “ANIMAIS!!!!”, parece mesmo que estava ali com tudo. Só que, quando volta a escuridão, fica mais patente ainda a diferença entre essa Joana e a de Georgette Fadel. Georgette estava ali tanto e tanto, a ponto de eu pensar- seria melhor moderar em alguma cena, é tensão demais... Mas funciona!
Depois as coisas pioram: tem música cantada com emoção, cenas mexicanas com “não me bata meu amor!” (uma cena que se repete em ritmo mais rápido é legal, mas um chute coreografado do Machão na barriga da Pobrezinha torna-se cômico) e os “pobres” dançando com algo como boá de retalhos e chapeuzinho Panamá colorido. Não dá. O público delira com as cenas Broadway, a evocação de Ogun com uma saia de cigana-Carmen-Miranda, um samba “Vila da Alegria” que vira funk e bolero.
Que diabos deu de o microfone ficar achatado e mugindo quando os personagens se abraçam? Nada contra seu uso, mas, de alguma forma parecia que tornava tudo ainda mais premeditado, como uma gravação. (Não ajudam os “fazerrrrr”, “comerrrr”, tudo com um português que nem o Pasquale pode falar...) No final, morrem as crianças sem que tenhamos sentido quase nada. (Quando, na última cena entram gritando “PAAAI”, você começa a rir). Quem pode chorar a morte de um menininho de camisa branca e calção marrom e uma menina de vestidinho e laço (ou quase)? Entra uma “Cumadi” com um agudo de “Rainha da Noite”, será pra nos acordar?
Enfim, será que neste mundo onde todos queremos imitar as celebridades, pois afinal as celebridades nos são dadas como modelo, será que é tão difícil assim mostrar o coração? Será que não temos idéias novas, vivendo dentro dos Jardins, será que a última vez que vimos um pobre foi no “Alô Amigos?”, ao som de Tico-tico no Fubá? Esperamos da arte um mínimo de ousadia. A música é boa, os musicais são bons, mas custava tirar um pouco de tudo- por exemplo, para que uma música do gigolô falando do seu pau (depois ele mostra a bunda, claro)?
Chico virou Deus, quando? Pobre de oncinha é mais fácil que ver a humanidade em todos, ricos e pobres. Na saída leio no folder: “graças a ... consegui realizar este projeto...” Como Chico é chic! A capa mostra as pessoas com as mãos na testa, (na entrada você pensa que é um gesto melodramático de “Ai Meu Deus!”), mas é só um ritual de macumba. Ai, Meu Deus! As desgraças às quais o diretor se refere- caos aéreo, a crise do Senado, o mensalão, as balas perdidas, João Hélio- são todas midiáticas e mostram a distância de outras tão reais: salários baixos, trabalho temporário, estudo-pró-forma, ônibus lotado, polícia na favela... Muito tempo depois de que Chico e Paulo Fontes tenham se aproximado do povo. “Samba, daí, nunca mais.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário