Leite - sobre Luis Antônio Gabriela
Gostei. Quase chorei. Cantei junto. O meio me empolgou. O protagonista arrasou. Dança, som, tem momentos Broadway do bem, aplaudido em cena aberta. E, como ainda estamos no começo, há tempo para menos tempo. O desafio, aqui, é desfazer todos os estereótipos que temos, atores, público, família, com relação aos travestis. Em progresso - ferida aberta.
O gráfico da peça seria uma parábola, se não acabasse com uma explosão. Entre os mandamentos da encenação estão: comece com a curiosidade, a desorientação; seja breve; acabe intenso, ou logo depois. Eu vi uma propaganda que dizia: comece no topo. Apesar do absurdo lógico, aqui se aplica.
Um “Gift” de Elton John, com ruídos. A apresentação onde os atores se colocam com seus nomes verdadeiros. Polícia, prisão, surra, glamour da biba. Um irmão pega o outro, indicações. Cenas (curtas de uma infância). Europa. Passagem com irmã em Bilbao, cinco palavras para contar uma doença, cama em luz azul com despedida, volta Elton John. Seria a peça do ano.
O dono do cachorro nos leva numa viagem interessante sobre um irmão “bicha”, “pederasta”, travesti, perseguido pela ditadura e que morre. Mas o tema em si é sempre fundo na arte. Conta o impacto. Em um vídeo no fim, mostra-se o diretor, Nelson Baskerville, no início do processo, afirmando que tem o meio, e o começo e o fim sairiam do trabalho colaborativo. Essa é a explicação, talvez, para um início que vai muito lento, biográfico. Com luz muito. Uma frase (“Já viu homem tirar leite?”) foi dita vezes demais. Poda.
Eu vi ontem Dr. Pet mostrando um cão que era muito autoconfiante e que, por isso, precisava ser colocado sobre uma plataforma solta, que era puxada com força, fazendo-o perder o equilíbrio. Parece. É algo paradoxal que na nossa sociedade de desconexão violenta (o que significam tantas imagens cruas na tela?), de preconceitos massivos e isolamento comunicativo tenhamos de começar pelo topo para prender a atenção.
Então eu acho que a peça – com seu belo uso da música, sua cenografia interessante, com as telas ótimas de Thiago Hattnher, luzes, cores e negros adequados – ganharia muito se limpasse vinte minutos e cem palavras. É a diferença entre um relato memorialístico com brilhos e uma síntese cênica perfeita. Como dizia Roberto Alvim, hoje com uma frase entendemos o que no século XIX precisava dez páginas. (Outra sacada: o espectador precisa completar...)
Por exemplo, no final, quando já chegamos lá, volta uma longa descrição de doença, com fotos caseiras que nos tiram do estado “estético” de tentar reconfigurações, de “outra sensibilidade”, com exibição de documentos que não estão em linha causal. Esse “uso” mais curto ou em outro momento, podia ser um elemento a mais, um instigador. Sutileza, sugestão. Menos madrasta. Porque de forma alguma trata-se de uma pessoa, um irmão, uma homem datado.
Os travestis no Brasil perderam seu lugar na sociedade, me dizem. É impressionante que não haja, ainda hoje, lugar para os gays pobres que se percebem em outro corpo, estranho. Ou mesmo para os que têm de assumir outro gênero, porque não cabem no papel sexual. A peça traz à tona essa realidade dura e “marginal”, tão contemporânea na nossa forma de “não ver mais” o que “já foi resolvido”. E saímos com um sorriso.
Afonso Lima
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