Cidade
Baixa
O
plano era derrubar tudo e criar um novo bairro, chamado Cidade Alta. As casas
antigas, o caminhar pelas ruas verdes e a vida boêmia seriam substituídas por
“progresso”. (Érico Veríssimo, em “O lírio do campo”, mostrou como os espigões
podiam ser fatais...)
Ele
saía de um jantar romântico. 25 anos, cabelo castanho escuro, 1,75, ativo
liberal. Estavam felizes e levemente alcoolizados. A Rua da Praia era toda
dourado com suas árvores altas. Um carro veio em alta velocidade. Beckett é
sempre igual: escuro, cara branca, será que em todo lugar é assim, ele
disse dois minutos antes, Eu gosto.
Foram
quatro meses dentro de casa. (Morte: Se n é a catástrofe final, n+1 não pode
ser a catástrofe final; se n+1 não é a catástrofe final, (n+1)+1 não é a catástrofe final. São uns instantes, aqueles
momentos de branco em que você segura o pinto e espera o xixi e pode pensar:
está tudo perdido, acabe logo com isso. Se o amor é filho de deuses, no mínimo
deveria ser um semi-deus. “O fim está no começo e no entanto continua-se”.)
Seus amigos (Vera – loira, livro preferido: Paris é uma festa, Sagarana,
filme: Morangos silvestres, viciada em videogame, pós-roqueira, peitos
grandes, falante compulsiva, poeta, formada em Letras, manicure; Cesar –
advogado, grisalho, ex-amante, violino, jazz, O Gordo e o Magro e O
capital, vizinho, você precisa de um emprego de verdade, é inteligente e
bom) estavam preocupados. Um passeio no shopping? Um desconfiava do outro, era
necessário.
Quando
vai cair a última casa, caem os panos, um fim para nenhum conflito, como será
viver nessa prisão, Cidade Alta, preciso morrer antes.
Foi
assim que se conheceram: estavam girando o gôndola de livros de bolso. Seu
celular tocou. Não tinha forças. Uma
das coisas que adorava fazer com ele era tomar chá com “biscoitos Natal” -
caminhar à beira do Lago, brigar um pouco e fazer amor no frio. Tenho que
comprar pão e uma cueca nova. Lembrou de Melissa, ficaram juntos uma semana,
por que lembrei dela agora, ela usava meias brancas na cama. Abaixaram os
olhos, como quando as coisas são grandes. Silêncio, outro olhar, vou sair, ele
falou alguma coisa, você também gosta de Thomas Mann?, telefone, bebida, foi
bom pra você. Ok. Tudo vibra, tio Heráclito, ou, como disse Cesar, parece
haver um movimento intrínseco aos níveis mais elementares da matéria, mesmo
no zero absoluto há energia. Tudo que é duro desmancha no ar.
(Pensava
sempre num jogo impossível: as regras mudam com o tempo: no início do jogo,
os peões comem as peças em L, os nobres ficam imóveis dependendo de seu vizinho
ou comem uma casa para frente; depois, isso se inverte, quando resta apenas a
metade dos peões; no fim, os peões podem escolher qual seus “modos” e o rei ataca
em todas as direções ou sai do tabuleiro).
Ele
voltava à ativa. Seu celular tocou. Um cliente no outro lado da cidade. No
taxi, observava os casais de namorados, as casas baixas tornavam a vida mais
humana? Não há mais natureza, lá fora é só poeira e a destruição completa,
só existe sono, despertar, noite e manhã, ele disse. No futuro, seriam
implantados chips para monitorar nosso batimento cardíaco? Em centrais de
controle? E quanto aos miseráveis? Receberíamos mensagens quanto ao nosso
desempenho profissional semanal, nosso progresso rumo ao “sucesso”, sobre nossa
performance sexual média, gráficos sobre as melhorias semanais do governo e
novos empreendimentos imperdíveis? Adeus Cidade Baixa. Quantas histórias ficam
grudadas em uma parede? Como seria quando cada prédio de 15 apartamentos se
tornasse uma torre com cem? Os vereadores falavam em “requalificação”, “atrair
público novo”. As leis existem, e daí? Os escravos viveram ali. Nesta casa,
Getúlio Vargas começou a planejar secretamente a Revolução de Trinta, lembra.
Tudo tem que melhorar nesse mundo - dizia um vereador.
O trabalho Cidade Baixa de Afonso Jr. Lima foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Podem estar disponíveis autorizações adicionais ao âmbito desta licença em http://afonsojunior.blogspot.com.br/.
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