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sábado, junho 22, 2013

Carnaval democrático - e agora?


Todos estão se perguntando: "o que está acontecendo?" Aos poucos as coisas estão ficando mais claras e tentamos juntar as peças, enquanto continuam os tumultos e turbulências. Todo mundo sabe que um filho que não é ouvido, torna-se violento. (E que podemos, assustados, ferir quem nos ajuda). Temos de pensar sob a urgência, somos do imediato, para o bem e para o mal. Nisso, ajuda a história. 


Ainda temos de fazer a democracia. Não dá vontade de chorar quando a gente descobre que em Copenhagen eles têm piscinas públicas, Paris e Londres tem Câmaras de Vereadores de bairro? Lembra do Orçamento Participativo de Porto Alegre? Quando se pensa que um buffet de sushi na Faria Lima custa R$ 55,00 e um cheque-despejo do Kassab é de R$ 300,00?  Que 16 milhões ainda vivem em miséria extrema - o que quem vive nas bolhas de riqueza nem imagina.

O caso do Movimento pelo cine Belas Artes mostrou como funciona essa nova "exclusão": você é chamado para reuniões e tratado como "criança rebelde"; as audiências públicas atingem pouco quem manda; os órgãos públicos usam uma série de mecanismos da lei para evitar as demandas; a própria mídia já olha toda a manifestação como ignorância, a seita platônica dos sábios pressupõe a ignorância do "povo"... E, por isso, há a suspensão da crença. Na estrutura de nossas relações saber é poder. Vivemos numa sociedade hiper-hierárquica, onde a todo momento desqualificamos o discurso do outro. Estamos tão isolados que podemos, como eu vi ontem, passar o sinal fechado numa avenida, atender o celular em uma palestra, entrar num estacionamento sem diminuir a velocidade quase atropelando o pedestre... 


Democracia é participação e entendimento (acesso à cultura, educação, livros, debate público, assembleias, bibliotecas, etc.). Políticas que criem ambientes de encontro, reflexão e uma consciência coletiva: não é à toa que a democracia grega criou o teatro. Nossa democracia ainda não incorporou de fato o diálogo e a expressão direta e acabar com a desigualdade não foi uma prioridade em todos os níveis, ainda que, para evitar uma injustiça, tenhamos que reconhecer que os últimos dois governos tenham representado uma resistência forte contra a nova aristocracia global e a destruição da democracia, que ontem tinham o nome de Consenso de Washington e de FMI, para quem todo investimento era gasto. 

Tivemos um apagão por falta de investimento, o movimento Arte contra a Barbárie por uma visão meramente privatista da cultura (como se nosso empresário fosse o americano, culturalmente instruído a doar para a comunidade), a educação estacionada e regredindo... Era do "engavetador geral", com mais de 4 mil processos detidos (quem ouviu falar?; e no "mensalão?) Tem algo de "milagrinho", quando despencou a qualidade de vida dos mais pobres e 600 mil crianças viviam abandonadas na Grande São Paulo. É bom lembrar:


Em 1979, apenas 4% da população economicamente ativa do Rio de Janeiro e São Paulo ganha acima de dez salários mínimos. A maioria, 40%, recebe até três salários mínimos. Além disso, o valor real do salário mínimo cai drasticamente. Em 1959, um trabalhador que ganhasse salário mínimo precisava trabalhar 65 horas para comprar os alimentos necessários à sua família. No final da década de 70 o número de horas necessárias passa para 153. No campo, a maior parte dos trabalhadores não recebe sequer o salário mínimo.

Em compasso de espera há quase 30 anos. Onde estão as grandes mudanças? O ProUni colocou os pobres na universidade, mas nossas calçadas ainda são um lixo e nossas Câmaras são elitistas (ok, se salvam dois). Dá medo pensar, por exemplo que os royalties do petróleo podem NÃO ser usados na educação! Não se criou espaços de debate onde circula a crítica e a revisão, as decisões cabem à minorias. É a nano-política, política do detalhe: todo mundo ama a igualdade, mas nos casos específicos protege a concentração de renda e poder. Senão, vejamos:

Um exemplo: a verba destinada à região da subprefeitura de Pinheiros (Pinheiros, Jardim Paulista, Alto de Pinheiros e Itaim Bibi), com 245 mil habitantes divididos por 32 km2, foi quatro vezes maior do que o total destinado à Capela do Socorro (Socorro, Cidade Dutra e Grajaú), que tem 645 mil habitantes em uma área de 134 km2. 
http://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/04/24/ult23u2015.jhtm


Principalmente à nível municipal e estadual, as estruturas da ditadura se mantém: muita aparência e pouco debate e resultado. Milhões foram inseridos no consumo, mas ainda não sentiram que sua voz fosse ouvida. Ainda vale o poder das corporações em direcionar políticas públicas - o caso mais notório, o desfigurar da Copa, que até agora pouco trouxe de melhoria para nossa vida diária (mobilidade, por exemplo). Em todo o mundo, dominado pelas corporações e bancos, cabe aos movimentos levar os partidos eleitos em direção à igualdade.


Existem agora vários protestos: muita gente querendo o que todo mundo quer e sempre quis (saúde, educação, menos corrupção); os brasileiros no estrangeiro protestam porque a vida lá é melhor, mesmo em profissões menos reconhecidas socialmente; existe o protesto alienado, que repete slogans da mídia partidarizada; existe o protesto mais primitivo e radical da violência sem foco e existe o banditismo. Existe o movimento que agora estoura no resto do país, que sofre mais, porque afinal o Brasil não é São Paulo e não tem seu histórico de melhorias - com todo seu drama, a cidade oferece um outro Brasil, com bibliotecas, teatros e opções de educação. (Por falar nisso: ouvi de um secretário tucano que se devia encher as bibliotecas de Harry Potter, pois avaliam por número; e, ainda: não devíamos ter uma boa biblioteca por bairro? Será que com 170 bilhões de orçamento do estado não dá?)


Quem está parando as rodovias acordou: por que motivo não temos ainda um metrô para o ABC? Espero que se pense: foram 5 bilhões para um rodoanel para quê? É o cidadão-lucro, o povo visto como negócio, e os transportes explicitam isso. O mercado de músicas machistas me mostra continuamente que ainda estamos longe de distribuir conhecimento e valores básicos, e os moradores de rua vivendo como animais me mostram que ainda aceitamos um pensamento de casta.

Agora, muita coisa foi revelada.
Num primeiro momento, vimos que a polícia não está preparada para a democracia. Parecia que "toda manifestação" era baderna. O governador viu que não dá para lidar com a classe média assim e, juntando com os números recentes de crescimento da criminalidade... Vale a pena lembrar aqui a esquisita ausência de polícia na Virada Cultural: o Estadão denunciou que, mesmo avisados de que estavam ocorrendo arrastões, os policiais apenas observavam. No metrô Anhangabaú, às 4hs, havia uma multidão e dois policiais a uma quadra. (Essa ausência se repetiu depois, nos saques às lojas, levantando suspeitas de fins políticos). 


A reação contra a desproporção da violência encheu a Faria Lima, para mim, com mais de um milhão de pessoas. Uma festa da democracia, emocionante, impressionante. O grito "que coincidência, sem polícia, sem violência" e "Brasil, vamos acordar, um professor vale mais que o Neymar", gritados por dezenas, é histórico. Mas não nos livramos do passado tão facilmente: a "contrarevolução" nos tirou, claro, a curiosidade, de ler a realidade fora do meu umbigo, família, bairro. Fomos criados para ter medo de gente. Para ver um subversivo em todo o jovem. Para querer "segurança" à qualquer custo. Para ver "sem paixão" dois lados de uma questão, dando valor igual ao justo e ao injusto, até ficarmos inertes. 

Não passamos pelo Iluminismo: todo cidadão tem os meios para refletir, ouse saber! Como revitalizar os mecanismos democráticos dentro e fora de nós? E a reforma política, para acabar com as promoções de deputados e vereadores? Podemos ter uma assembleia com a população mensalmente, em um horário em que se possa ir, na Câmara de Vereadores, para debater as votações do mês? Um telão passando as sessões no MASP e na República? Precisamos ousar. 


Outro lado que fica patente é a "desilusão com a política" e o "antipartidarismo". O que pode trazer conscientização é a educação com valores democráticos, que ao mesmo tempo, respeita a autonomia e desenvolve o senso crítico. É visível que muita gente não sabe nem as causas de seu desespero, nem o que já foi feito e nem como exigir o que quer. Não consegue defender seus próprios interesses, pois não sabe quem é seu amigo. Geléia geral. Descobri devido ao Movimento pelo Cine Belas Artes, o quanto cabe aos estados e municípios uma série de decisões sobre temas locais, o quanto o prefeito tem de querer receber ajuda. (Um exemplo é a descentralização e municipalização da educação). Lembro de um amigo que tentou em vão movimentar estudantes "contra o sistema" quando a prefeitura queria entregar o bairro Santa Ifigênia ao mercado imobiliário: o diabo mora nos detalhes.

“Eis a causa da prevalência do interesse privado sobre o interesse público – doações de campanha e lucro aos empresários sob compromisso de confidencialidade”, diz a ação.


http://blogs.estadao.com.br/jt-cidades/mp-quer-devolucao-de-taxa-de-inspecao-e-kassab-afastado/



Quando qualquer debate sobre a homofobia nas escolas, por exemplo, não avança, fica claro que "os vinte anos de escola" criaram, ao lado de uma elite com agressividade fria baseada em números, uma massa excluída conservadora. Ou seja, democracia formal sem democracia de debate é nada. A única coisa que pode nos salvar do fascismo e do enrijecimento é a crítica do outro, que nos mostra nossos preconceitos, o estudo do diferente, o contato.


É o que eu chamo de bloqueio comunicativo: sem acesso a informação de qualidade e formação intelectual, sem espaços de convivência e debate público, girando em círculos, hiperfocados, sem contraditório, cria-se um sistema de informações distorcidas, banalizadas, aclichezadas, arcaicas, ao lado de um "modernismo de fachada", uma revolta "de costumes"; a sensação de que "não sei nada" e é melhor "não falar do que não sei". (Nessas horas, lembro de Brizola, que fez uma escola em cada ponto do RS). Neste clima o empresário pensa que não faz parte da sociedade e se sente invadido ao pagar impostos, sejam quais forem os ajustes necessários. É duro pensar que as pessoas não sabem nem quem tem atribuição de quê e culpam a Dilma por falta de investimentos na saúde e educação. A classe A não entende por que deveria haver distribuição e está acomodada em reproduzir a desigualdade através do acúmulo de conhecimento: nossa democracia formal foi um "jeitinho", não uma reflexão sobre o passado. 

Sociedade dos especialistas, progresso atômico. Temos muita informação e pouco confronto com o real, ainda mais em São Paulo, cidade dos guetos, sem espaços públicos e consultas, onde a palavra "periferia" passou a ser um conceito que explica o descaso e a omissão. "São Paulo tem gente demais" é a resposta para a falta de eficiência dos prefeitos. E nenhum paulistano pode esquecer o caos do governo Kassab: mudanças no Plano Diretor, terror nas desapropriações e desocupações, zero de participação, venda de terrenos públicos, inspeção veicular absurda...


Também observamos a mídia, que tantas vezes, por velocidade, conservadorismo ou hábito parece deslegitimar as demandas populares, e começou usando velhos conceitos para novas ansiedades. Ela foi obrigada a mudar. Essa foi uma vitória incrível das redes sociais, que rapidamente responderam aos gritos de "vândalos" com imagens de feridos. Aqui tivemos uma atitude real, que faz pensar quem acha que Facebook é só alienação.


Depois, vieram os políticos conservadores, que se apoiam numa classe média "cansei", isolada na montanha, que tentaram falar na volta da inflação para voltar ao poder. O velho "medo", para ajudar quem nunca fez nada. Usando a injustiça de uma polícia repressora, que simbolizou e catalizou outras injustiças, para fins eleitoreiros. É bom lembrar que, na Inglaterra, que fez uma grande revolução após a Guerra, quem votou em Thatcher foram os filhos engravatados da classe trabalhadora, que havia saído de minas insalubres e ganhado casas de dois andares com jardim; e ela destruiu isso tudo, facilitando a crise de 2008.


As pessoas saíram da miséria. Agora querem mais. Como o namorado que ganhou um beijo. E tem a sensação de poder que tomar a rua dá. O prazer legítimo do poder. A sensação de que existe uma sociedade e não apenas meu mundo. Eu vi duas meninas jovens e bonitas enroladas na bandeira do Brasil, um homem grisalho com "cara pintada". Talvez eles peguem o que fura o bloqueio comunicativo ou o que interessa à publicidade noticiosa. Mas é bonito. Faz tempo que as únicas multidões vistas são do carnaval, do Corinthians e alguma gang. 

Será bom se Congresso e governadores acordarem. Qualquer pessoa que tenha tentado mobilizar alguém em São Paulo sabe que as coisas morrem antes de começar: por que vou sair de casa se o outro não vai? Não adianta mesmo. Nada pode ser diferente. Não vou pagar esse mico. O que resulta é viver sozinho em sociedade. Deixar rolar as divisões do orçamento na Câmara. Aceitar que o político é patrocinado como todo o resto. Um apresentador de TV que diz: "se um desses tomar um tiro é bem tomado!"

Há muita coisa indigesta. Nosso país cresceu, mas nossas cidades estão mais democráticas? Por que São Paulo não tem uma política de moradia consistente? Como temos apenas 4 e 1/2 linhas de metrô? Os governos educaram a população - com ausência - a não participar. Quando os poderes locais se isentam da responsabilidade de ouvir e de fomentar participação e até a impedem, criam a apatia e a revolta. É preciso usar essa energia para criar uma democracia de fato, e não apenas de voto.