Páginas

Ajude a manter esse blog

quinta-feira, julho 14, 2016

Queda

riyoon
сан
bruadar
unistus
somiar

Algumas vezes ficava no Google tentando descobrir como outras pessoas diziam aquilo que queria dizer.
Algumas vezes ficava pensando como afinal o cérebro juntava as letras e elas levavam à imagens. Como letras levavam à experiências e memórias? Google poeta: a series of thoughts, images, and sensations occurring in a person's mind during sleep.
Tentara explicar para a moça da biblioteca que haviam cometido um erro, mas teria de levar dois livros lá de qualquer forma, havia uma reserva. Andar é bom. 
Contrato entre duas mentes, criação coletiva. Tinha traduzido um poema. Parece que Borges pensava que traduzir era criar. Sonhava entre as linhas. Cada emoção abria uma porta. Lembra da letra borrada num livro, um B que perde sua forma, um A apagado, no qual os elos não fecham. O livro que tinha folhas tão brancas e brilhantes, estava com medo de sujá-lo, colocou uma capa falsa. O livro no qual uma das páginas estava grudada à outra, teria de separar com uma tesoura para não pular uma história em seu início.
Devia ter ido pela outra rua. 
O que havia de mais bizarro era a ambiguidade entre uma zona comercial e agitada e lampejos de zona de guerra. 
Coragem. Tudo depende do seu espírito. Julgar, combinar, resistir. Um executivo bem alinhado, a moça de terninho na bike, desce do carro um senhor com uma bela gravata com uma pasta de couro reluzente. 
Como era difícil achar o tempo. Será que tinham tempo? Nem a biblioteca sagrada como oposto da via, nem a vida mercantil como apocalipse do novo. Parece que a cultura ameaça com sua espada todos os rebeldes - onde está o resultado, o foco, o objetivo? Sempre achara que era para descobrir o mistério que investigava. Sempre achava que em cada coisa concreta havia um passado e só o livro podia revelar. Easter egg. 

Não fazia o que queria. Tinha medo de alguns livros na verdade. Assim como algumas crianças têm medo de figuras e sombras. 
Em que enredo colocar essas coisas. Como a cidade ficara tão feia? Quem são essas pessoas que não fazem parte da fábula? O que não contamos é esquecido. 
O cruzamento sob um prédio feio e parecendo abandonado pela história, aqui um canteiro mal feito te força a seguir pela ciclovia, a via da direita é o caos, resolves ir pela esquerda, cruzar pelo sinal, o próximo demora meia hora.

Aquela capa da biblioteca que já viera rasgada, esqueceu de falar para a funcionária. Aquela vez que deixou cair molho num livro emprestado. Como ficava apagando minuciosamente todos os flagelos sublinhados e como se confundia com manchas, falsos pontos do papel em livros novos. Aquela capa inacreditável, feia. 

Avenida perdida. O tempo impressionante no qual os carros ficam parados à distância, e os da direita não chegam, te força a atravessar angustiado.

O tempo ganho na vida era esse tempo roubado. Coisas que partilhamos. 
O verso é sobre a lenda que fecunda a realidade. Que é Portugal senão Pessoa? 
A queda. D. Sebastião e o sultão Mohammed contra o Moluco e os otomanos. 7000 nobres perdidos. Camões teria dito que amava tanto sua pátria que morriam juntos. Ou ao contrário. 
Mas sonho tem asas, virá o Quinto Império quando o cavaleiro Galaaz encontrar o Graal da palavra certa. 
"O sonho é ver as formas invisíveis/ movimento de esperança e de vontade". 

Um corpo vivo ou morto coberto, no chão, uma mulher come uma marmita.
Uma sociedade miserável é a que mais precisa de fantasia, disse um poeta. Somente o que sentimos compreendemos.
Livros na banca de jornal. Será o século XXI o século do preconceito, do discurso oficial, da rigidez da ignorância? 
Não existe essa coisa de se identificar com os outros, dissera um conhecido, cada um é único e exclusivo. Quanta coisa está guardada e é o narrador que conta. 
Pensa no sonho de Daniel, sonha com uma pedra que destrói uma grande estatua de ouro, prata e bronze, com pés de barro.  
"É O que me sonhei que eterno dura" - marinheiro sonhando um novo reino, a glória pelo verso. 
Barracas e cães, homens com seus cobertores sujos na marquise.
Precisava marcar com a amiga. Imigrante qualificada em férias. Estavam cortando custos na universidade, divulgar literatura estrangeira era dispensável. 
Pensando bem conhecia cada vez mais gente que não se importava com livros. A vida podia existir apenas com futebol, séries americanas, compras, livros técnicos, games, jornalismo. 
Será que o mundo seria finalmente estático? 

O livro não era o que parecia. O livro buscado não está na estante. O espírito mudou e desiste do outro. 
As primeiras linhas são adoráveis.  

Afonso Lima

Nenhum comentário: