Montevidéu - 14 de novembro de 2021
"O que vamos assistir?", me perguntam.
Livre-associação, respondo.
Vivemos o cruzamento das artes visuais, dramáticas e da performance.
Já não é apenas um "acontecer", ou um corpo em risco como foi nos anos 1970.
Nos assusta a ideia de que todas as vivências podem ser clonadas e recompostas em produtos cult.
Podermos associar livremente é muito no mundo onde tudo tem de ser transformado em produtividade (lucro), portanto, no qual o desejo é planejado, no país onde a aristocracia rural quer converter à todos em escravos de novo - como toda a direita, abandonando o sentido (Jorge Alemán) em nome de um delírio persecutório que mobiliza a pobreza intelectual plantada pelo neoliberalismo.
Esse trabalho foi realizado no Espacio de Arte Contemporáneo - "antigua cárcel de Miguelete (1889-1986)". O "control omnipresente" do sistema arquitetônico panóptico pode parecer muito com a jaula invisível que sufoca a cada dia o não planejável e o novo.
A "primeira cena" que vemos nos remete mais a uma instalação - dois atuantes no solo, um em pé projetando uma grande sombra na parede, outro muito atrás projetando uma sombra pequena. É como um umbral no qual entramos.
Aqui domina a música e o medo. O tempo se deforma.
A pessoa que me recebeu falara em mover-se em busca de uma melhor perspectiva. O público deveria circular pela instalação, mas de modo geral, fica em pé nas paredes.
A imobilidade me remete a repressão que criava um lugar absoluto a cada sujeito, mas também a nossa própria situação quando um vírus mortal nos isolou.
Começam movimentos que me remetem à poética do fracasso de Samuel Beckett - que tanto inspirou os artistas plásticos e performers.
Um esforço sempre cômico. A repetição quando a própria paisagem parece desértica.
Lembremos de Bruce Nauman (1941) lendo Samuel Beckett (1906-1989).
Repetindo tarefas banais, o artista queria dilatar o tempo: "um corpo que se lança em atividades insólitas e que nelas e com elas perde tempo" (Liliane Benetti - Bruce Nauman, Samuel Beckett, O despovoador - USP - Literatura e Sociedade, n. 55)
A outra estruturação ocorre quando os atuantes entram para baixo da lona que cobria o chão e criam "montanhas" dançantes.
São uma versão sombria dos parangolés, do artista brasileiro Hélio Oiticica. Os corpos vão buscar algo, descobrem o desejo.
Uma atuante dança na sombra - seus estranhos movimentos são quase invisíveis. Um fantasma. Está "desaparecida"? Está surgindo lentamente?
Uma dança de espelhos cobre de azul os edifícios. A luz fere, mas também transfigura.
Porém o modernismo, com sua poética de ruína, é passado: já emergem linguagens que desnorteiam
as nervuras da mentalidade hetero-patriarcolonial.
Agora tudo é ruínas e sacos de lixo pretos.
As plantas aparecem, plantas em contrastes com esses corpos que já nos parecem cansados e cheios de história. É como se os jovens quisessem libertar-se desse passado sem negá-lo.
Eu sabia o tempo que ia durar a obra. Saí cedo: o público ficou ainda, penso que querem habitar esse novo espaço insurgente.
Já passou o tempo do novo. Resta um tempo no qual estejamos presentes.
Uma das integrantes, depois, me conta que a ideia de ausência de centro estava presente na elaboração, por exemplo, ausência de uma temática clara ou de um centro narrativo. Mas é impossível não pensar na ausência de corpos e desejos na ditadura.
Nesse sentido, é um pouco necessário mostrar que nem tudo está achado.
O grupo cita Gertrude Stein: "tudo que não é uma história pode ser uma peça".
Afonso Junior Ferreira de Lima
"O que vamos assistir?", me perguntam.
Livre-associação, respondo.
Vivemos o cruzamento das artes visuais, dramáticas e da performance.
Já não é apenas um "acontecer", ou um corpo em risco como foi nos anos 1970.
Nos assusta a ideia de que todas as vivências podem ser clonadas e recompostas em produtos cult.
Podermos associar livremente é muito no mundo onde tudo tem de ser transformado em produtividade (lucro), portanto, no qual o desejo é planejado, no país onde a aristocracia rural quer converter à todos em escravos de novo - como toda a direita, abandonando o sentido (Jorge Alemán) em nome de um delírio persecutório que mobiliza a pobreza intelectual plantada pelo neoliberalismo.
Esse trabalho foi realizado no Espacio de Arte Contemporáneo - "antigua cárcel de Miguelete (1889-1986)". O "control omnipresente" do sistema arquitetônico panóptico pode parecer muito com a jaula invisível que sufoca a cada dia o não planejável e o novo.
A "primeira cena" que vemos nos remete mais a uma instalação - dois atuantes no solo, um em pé projetando uma grande sombra na parede, outro muito atrás projetando uma sombra pequena. É como um umbral no qual entramos.
Aqui domina a música e o medo. O tempo se deforma.
A pessoa que me recebeu falara em mover-se em busca de uma melhor perspectiva. O público deveria circular pela instalação, mas de modo geral, fica em pé nas paredes.
A imobilidade me remete a repressão que criava um lugar absoluto a cada sujeito, mas também a nossa própria situação quando um vírus mortal nos isolou.
Começam movimentos que me remetem à poética do fracasso de Samuel Beckett - que tanto inspirou os artistas plásticos e performers.
Um esforço sempre cômico. A repetição quando a própria paisagem parece desértica.
Lembremos de Bruce Nauman (1941) lendo Samuel Beckett (1906-1989).
Repetindo tarefas banais, o artista queria dilatar o tempo: "um corpo que se lança em atividades insólitas e que nelas e com elas perde tempo" (Liliane Benetti - Bruce Nauman, Samuel Beckett, O despovoador - USP - Literatura e Sociedade, n. 55)
A outra estruturação ocorre quando os atuantes entram para baixo da lona que cobria o chão e criam "montanhas" dançantes.
São uma versão sombria dos parangolés, do artista brasileiro Hélio Oiticica. Os corpos vão buscar algo, descobrem o desejo.
Uma atuante dança na sombra - seus estranhos movimentos são quase invisíveis. Um fantasma. Está "desaparecida"? Está surgindo lentamente?
Uma dança de espelhos cobre de azul os edifícios. A luz fere, mas também transfigura.
Porém o modernismo, com sua poética de ruína, é passado: já emergem linguagens que desnorteiam
as nervuras da mentalidade hetero-patriarcolonial.
Agora tudo é ruínas e sacos de lixo pretos.
As plantas aparecem, plantas em contrastes com esses corpos que já nos parecem cansados e cheios de história. É como se os jovens quisessem libertar-se desse passado sem negá-lo.
Eu sabia o tempo que ia durar a obra. Saí cedo: o público ficou ainda, penso que querem habitar esse novo espaço insurgente.
Já passou o tempo do novo. Resta um tempo no qual estejamos presentes.
Uma das integrantes, depois, me conta que a ideia de ausência de centro estava presente na elaboração, por exemplo, ausência de uma temática clara ou de um centro narrativo. Mas é impossível não pensar na ausência de corpos e desejos na ditadura.
Nesse sentido, é um pouco necessário mostrar que nem tudo está achado.
O grupo cita Gertrude Stein: "tudo que não é uma história pode ser uma peça".
Afonso Junior Ferreira de Lima
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Benetti, L. -
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