Páginas

Ajude a manter esse blog

sábado, junho 23, 2007

O diretor inglês Luke Dixon esteve aqui em Porto Alegre com sua oficina Playing with Shakespeare, de 11 a 22 de Junho, em projeto do Departamento de Arte Dramática da UFRGS e do FINEP. Trabalhamos "Sonho de Uma Noite de Verão". Foi acompanhado dos excelentes atores Jean Pagni e Victoria Gillmon, ambos muitos simpáticos e generosos.

O que mais aprendemos com ele foi que trabalho significa diversão. Ele nos contou como Shakespeare tentava chamar a atenção de uma platéia de 3 mil pessoas, à céu aberto, que pagavam algo como 10 centavos para assistir comédias e tragédias em uma linguagem pouco conhecida para a época. os atores tinham de prestar muita atenção pois só recebiam suas falas e as "deixas". Resultado: tudo tinha de ser divertido.

Perder o ranço do século XIX, quando Shakespeare foi identificado com a mitológica visão de um classicismo movido a donzelas rimadas e tragédias solenes, era seu propósito. Disso faz parte também as traduções que, de modo geral, tendem ou a perder toda a rima, sendo traduzidas em prosa, ou simplificar totalmente os versos apresentando uma poesia banal, em geral feita não por poets, mas por estudiosos. O que acontece? Shakespeare parece ou chato ou simplista. Assim, tentei traduzir alguns trechos trabalhados.

Luke Dixon também incentivou bastante a subversão, com roupa de baixo, palavras indecentes e até um consolo de plástico. Tudo para chegar ao real sentido do texto- ou àquele que nos parece mais provável hoje- a flor mágica como o desejo sexual dos jovens, ardente, mutável, ilógico. Com direito às fadas dançando "funk" e dizendo "Chinelona!" para a rival de Titânia, a rainha das fadas.

Seu método dá ênfase à imaginação, ao despertar da criatividade no ator. Ou seja, um trabalho também individual e interno, mas quenão abandona o ritmo do coletivo ou o corpo. O que não deixa de ser um pouco diverso do que se está acostumado aqui no estado, muito influenciado pela corrente da Terreira da Tribo, um dos mais importantes e antigos grupos, que vai pela estrada de Artaud, Brecht, o dionisíaco, o ritual e a nudez.

Outra característica é o trabalho em cima da cena. Dentro dessa tendência de popularizar Shakespeare e trabalhar com a criatividade, os exercícios se dirigem para uma cena específica, como preparatórios para determinada função (ao invés de simplesmente abrir espaços de sensibilidade no corpo, como estamos mais acostumados por aqui).

Apesar de sabermos da importância do texto para essa escola, acabamos improvizando mais que o razoável, mas apresentamos um quadro bem variado e criativo de possibilidades de Oberons, Titânias e Bottons. Enfim, Luke nos ensinou a arte de ter prazer.

___

Algumas reflexões que pude fazer a partir da experiência me remeteram aos processos centrais de um evento cênico. Pareceu-me poder falar de quatro linhas de força, que colocamos heuristicamente.

1) Ação. Os atores são naturalmente seres que gostam de agir, ou o desejam. Até por nervosismo, se vêem obrigados a ocupar o espaço, a mover-se, a chamar a atenção. em geral gostam de subverter e de ver o retorno da platéia. Então, em primeiro lugar o evento cênico é sobre algo interessante acontecer. Esperamos ser surpreendidos. A primeira obrigação do ator é ser interessante.

2) Adequação. Entretanto, é muito comum percebermos em um grupo de atores quando o overacting atrapalha a encenação. Mesmo que precisemos de subversão, a ação não pode se tornar uma luta de indivíduos cada qual tentando chamar a atenção para si. Achar o equilíbrio entre explosão e respeito ao grupo, entre inovar e seguir a narração, entre ser critivo e ser generoso, é um delicado processo. Sempre percebi que o bom senso é uma das características básicas dos bons atores- falar no tempo certo, às vezes até subverter o texto. Na comédia bom senso é a base de tudo.


Uma das dificuldades maiores entre atores ultimamente (aliás, entre todas as profissões) é o trabalho em grupo. Como funcionar como um corpo único, sem parecer um balaio de egos procurando o holofote? Alguns exercícios de percepção do grupo ajudaram a trabalhar isso, por exemplo, quadros com os atores que se moviam em conjunto para criar outras cenas e o trabalho de espelho, em duplas e em grupo.
A oficina também foi sobre contar histórias. Fizemos inclusive um exercício de "escutar na escuridão", e, relacionando com Shakespeae, soubemos que sua época se falava "ir escutar uma peça". Talvez tenhamos perdido algo aí, quando passaos a "ver peças". Yoshi Oida nos fala, em seu livro "O Ator Invisível", de dois atores de kabuqui: um deles aponta a lua e as pessoas admiram o seu virtuosismo naquele gesto; outro aponta a lua e as pessoas vêem a Lua. "Eu prefiro esse tipo de ator: o que mostra a lua ao público. O ator capaz de se mostrar invisível", diz ele. O que está em primeiro lugar é a deliciosa contação, mesmo que seja um clima, um momento humano, um enredo sem falas.


3) Comunicação. A comunicação entre o grupo e entre este e a platéia é o verdadeiro objetivo da ação cênica. Entre o grupo isso significa estar aberto ao outro, ajuda-lo a expandir seu potencial, não criticar severamente, ter auto-estima suficiente para ir além da competição e dos papéis sociais que nos cobram produção, eficiência, correção, controle, força. Temos de a todo momento buscar essa comunicação, o prazer de estarmos juntos, a ponto de Grotowski chegar a dizer que, no seu grupo, tudo tratava-se de relações humanas. Em primeiro lugar é preciso acabar com o "certo e errado" e focar no "possível". Todo ser humano carrega um potencial de emoções, memórias e gestos capaz de usar em ações cênicas, e que podem ser potencializados com algum treinamento. Não se trata de julgar o outro, mas de acolhê-lo.

O público também deve ser acolhido. A peça não pode ser um ato de impor ao público uma bela arte, mas antes de usara reflexão do coletivo para dar a ele um texto que possa ser aceito. E ele é aceito quando fala algo que a todos interessa e com o que concordam. Assim o ato cênico é algo que "todos gostariam de ter dito" e cria um efeito de comoção. Passamos aos espectadores o sentido de que todas as pessoas são importants, e que estamos aqui e agora vivendo com eles uma relação humana.


4) Diversão. Aparentemente a diversão - além do prazer visual, sonoro e cinestésico- é tido como algo menor, abaixo da capacidade crítica e do senso estético. Mas sem ela nehum grupo pode sobreviver. A diversão pode ser até com o fato de sefalar de emoções profundas, causas sociais ou problemas que precisam ser debatidos. Essa característica significa também ter prazer com a própria conteção, por exemplo, um ator que tem uma veia cômica ligada a improvisação manter-se mais concentrado e introspectivo em determinado contexto.

Quando o ator como indivíduo perde essa capacidade de se divertir, de experimentar e de errar, se leva tão a sério que acaba entrando em jogos e poder- eu devo te agradar, inclusive querendo parecer informal, aberto e livre. A diversão pode ser mantida quando nos permitimos valorizar os outros e estabelecer com eles trocas criativas pressupondo que todos são interesantes. Quando estabelecemos essa comunicação além das hierarquies e comparações podemos nos divertir e o público percebe que ele também faz parte dessa grande aventura prazerosa e inovadora, ainda que a peça seja Hamlet.

Algo que considero fundamental é a generosidade. Significa desfazer o mundo como ele está, quebrar o medo e o autoritarismo do mercado. A competição da sociedade está minando nossa capacidade de criar e ser ator tornou-se ser "boneco" radical, falar frases de efeito para parecer rebelde e seguir todos os métodos antigos (principalmente a vanguarda, Grotowski e a desconstrução) para ser aceito e fingir para saber quem será o ator mais brilhante. Isso não tem nada a ver com arte.

Nenhum comentário: