Bienal: sobre o vazio e outras coisas
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(AS: O que está acontecendo com Israel? Alguém pode me explicar que atrocidade é essa?)
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É com certa ironia que o destino coloca juntos um grupo que evoluiu até a sofisticada linguagem do vazio e outro que quer entrar, está tão fora que não sabe bem a etiqueta, odeia alguma coisa invisível e usa essa linguagem como quer... Claro que é irônico a linguagem da "participação"- nascida de uma sociedade dadaísta/"anarquista" anti-conservadora- de um mundo pós-super-moderno virar "agressão" num contexto tupiniquim de exclusão... A arte chama participação, temos jovens doidos para ser parte de alguma coisa...
"Tanto na Bienal, quanto na Belas Artes, fui só para ver o que ia rolar. Mas, quando percebi, a lata de spray já estava na minha mão"- diz a rainha do branco.
"Vândala" ou "heroína dos descamizados"? "Pega mata e come..."
Sim, na "Bienal do vazio" houve a polêmica (horrenda) prisão de Caroline Pivetta da Mota (que os jornais chamam de "a pichadora") por quase dois meses. Ao mesmo tempo, Cholla, um cavalo de 23 anos arrebata o Prêmio Internacional Arte Laguna, na Itália ganhando de mais de mil artistas do mundo todo.
Assim, começam as simplificações. Não é a deixa para falar mal da elite cultural e da falta de critérios da arte?
A Bienal começou com o tom da crítica. "Crise financeira da instituição, que não pagou grande parte dos gastos da edição passada, inclusive com curadores estrangeiros", anunciou a Folha (9/11/2007). "A atual presidência da Bienal esteve envolvida em várias polêmicas, neste ano, e chegou a assinar um ajuste de termo de conduta com o Ministério Público, por cometer irregularidades ..." (8/11/2007)
Então a proposta desde sempre foi bem interessante: um debate até sobre o formato, a gestão, o patrocínio desde o modelo pai-senhor americano, etc... (Lembro de um artigo de Ivo Mesquita sobre isso, mas não acho agora...)
A arte no mundo todo se encontra em crise, provavelmente, porque os artistas vivem dentro das bolhas de luxo -linguísticamentosas, claro- cada vez mais fechadas, e o "atrito" com o real da "massa" sumiu, desde que a política real desapareceu da "opinião pública", coberta de produtos paradisíacos e tele-jornalvela.
Foi esse um daqueles momentos em que a violência oculta vem a tona em toda sua feiura: como disse o Ministro Paulo Vannuchi , "Daniel Dantas ficou preso muito menos tempo".
A maioria das críticas caiu sobre a curadoria, mas não vejo claramente qual sua suposta "culpa" neste caso. "O parque Ibirapuera é uma área de preservação ambiental e o Pavilhão da Bienal é um prédio tombado e monumento histórico estadual (...) Há uma lei e transgredi-la implica risco" -diz Mesquita em carta à Folha em 18 de dezembro. Ele chamou o ato de "arrastão" e assim descreveu o evento:"40 jovens invadem o pavilhão da Bienal como um arrastão, derrubando tudo, agredindo pessoas fisicamente, com o objetivo de, segundo a convocatória pela internet de seu líder Rafael Augustaitz, pichar o segundo e o terceiro andar, destruindo todas as obras. "
Estranho foi a frase da curadora Ana Paula Cohen na entrevista coletiva que antecedeu a Bienal:
"Estão convocando gente da periferia da cidade para fazer isso, e essas pessoas não sabem no que estão se metendo." (13/12/2008) Ameaça? Constatação? Soa um pouco "nós e eles"- será o caso de negar que foi criado um abismo? A falsa idéia de que "todos são iguais" aqui pode esconder a oportunidade negada de muita coisa: somos iguais em tudo, com os mesmos direitos, mas:
"Pesquisa realizada na Zona Sul de São Paulo pelo Departamento de Serviço Social da PUCSP e citada pela mesma reportagem da revista Carta Capital, mostra que '81% dos bairros pesquisados não têm bibliotecas públicas, 98% não dispõem de teatros, em 96% não há cinemas. Bancas de jornal também são raras. Das famílias entrevistadas, 39% reclamam que seus bairros não contam com delegacias e 46% dizem que não existe ronda policial' e ainda 'das casas visitadas, 78% apresentavam mais de quatro bares nas proximidades (p.14)."
(Telma Falcão, 2003 - Núcleos de Apoio a Pesquisa da Universidade de São Paulo.
http://www.nevusp.org/portugues/index.php?option=com_content&task=view&id=809&Itemid=96)
Lembro-me de uma amiga que tentou falar sobre a situação das escolas da ZL de São Paulo (onde mora) e foi censurada por outros moradores que não querem falar mal da região. Será o caso de esconder que a polícia perdeu o controle sobre Ipanema, negando-se a responsabilizar-se pela festa de Ano Novo lá, para preservar o turismo?
Por outro lado, Pedro Alexandre Sanches e Ramiro Zwetsch , na Carta Capital fazem uma mistura fina transformando tudo numa questão de luta de classes, numa suposta rebelião contra uma "elite" egoísta. Como se Ivo tivesse culpa de ter uma história sofisticada. (http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=10&i=2947)
Como ele responde, na carta: "Contraditoriamente, o Estado não lhe assegurou uma moradia até agora, conforme se depreende da lei que a mantém na cadeia! "
O que há é sim uma contradição "do sistema" (mas quem assina?): o patrimônio recebe leis de proteção e as pessoas não tem onde morar.
Elite mesmo é, por exemplo, o tal Instituto "Liberdade"(sic). Empresários que não querem pagar imposto (e, portanto distribuir renda) e chamam isso de "liberdade de impostos", desejam ganhar com a saúde e perguntam "É o Estado o melhor provedor de saúde?", cria um think-thank para esparramar idéias contra o Estado com as leis do Estado e afirma: "Travamos uma disputa de idéias da sociedade contemporânea, uma disputa pelas idéias que irão favorecer os progressos da liberdade". (?)
Elite mesmo é quando "o volume de recursos que chega aos bairros ricos é em média 4 vezes maior que chega aos bairros pobres."
(http://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/04/24/ult23u2015.jhtm)
O que percebo desse líder -citando Nietzsche- que comanda as pichações é que apropriou-se da linguagem "poser" da arte sem idéias (ou seja, arte que não representa postura perante a vida, e , portanto tem forma que não é "estética", não causa impressão aos sentidos) e da linguagem "pró-revolução" daqueles que já não vêem um diálogo possível (PCC, que leu seus 3 mil livros de esquerda, incluído). Talvez um caso de auto-promoção, como afirmou Mesquita, mas como dar-lhe crétido, afinal, não é um "membro da elite?" Isso tudo (uma rebelião confusa) enquanto a direita criminaliza qualquer reflexão contra a concentração de poder.
Salva o grupo o "pichador" Tatei que diz: “A gente não está de bobeira. Agora todo mundo está metendo o pau, mas ninguém quer saber como a gente vive". Caroline disse à Folha que picha “para o povo olhar e não gostar”. Então é isso: destruir o patrimônio é ir contra os direitos humanos do novo mundo, patrimonial.
"São manifestações de grupos que querem fugir do anonimato sinalizando sua existência, sua territorialidade" -diz o Ministro, evitando entrar no fácil comentário de um artista de que cita Jean-Luc Godard ("Cultura é regra, arte é exceção"): "A Bienal ao apagar os pichos está situad[a]e sitiad[a] no terreno da cultura, já os pichadores, eles estão no terreno da arte".
O picho "Abaixa a ditadura!" (sic) lembra o que o húngaro Ferecnzi dizia sobre o trauma na criança, uma "confusão de línguas": na linguagem da arte contemporânea, assim como do mundo contemporâneo, tudo entra em questionamento, menos a questão política da desigualdade; na arte-ataque da pichação tudo é política, já que não há espaços de diálogo na sociedade dita "aberta" (sonho do Instituto "Liberdade"). O trauma nasce não só da violência, mas da negação da violência, da sua "reação de desmentido".
É uma questão de distribuição, mais investimento público e não pode ser engolido pelo discurso, esse sim elitista, de uma arte do norte, pós-Estado de Bem-Estar Social, "o que é arte?"
E o cavalo? Se a arte contemporânea não tem mais nada a ver com o casamento hegeliano do "conceito" com a "forma" , "a individualidade" romântica do artista, mas apenas com seu intuitivo julgamento estético na escolha de formas, e se a arte está na recepção que "monta" o texto, já que até o lixo e a natureza podem ser belos, nada impede que o belo venha do acaso. Ou seja, fujam da estéril crítica ao vazio, simplificações e luta de classe falsa.
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