Um conto Steam-punk - Afonso Jr. Lima
PARTE 1
A ira
Aqui eu criei uma fábula steam-punk, de um mundo onde os vampiros dominam. Eu tenho um sonho.
Lorde Kevin
Eles haviam me colocado no cargo de primeiro-ministro de Gondal. Era assim que chamavam agora o Império. (As pessoas votavam essas coisas insignificantes... Compras, máquinas, shows... é a liberdade!) Também me chamaram de Azazel, aquele que ensina a lutar.
Com certeza o mito do vampiro romântico nos ajudou a criar nossa identidade. O Conde, Vlad Tepes, foi morto por um de nós para evitar que continuasse sua linhagem mostruosa e algo selvagem: percebemos antes de todos, a importância da sedução.
Se nossa história começara a ser divulgada no século XVIII com os relatórios dos médicos enviados pelo imperador austríaco às vilas próximas ao Danúbio e ao Morava, que confirmavam a suposta onda de ataques vampíricos, e mais tarde pelo padre Calmet, que, tentando criar um método crítico para analisar o assunto, fez, na verdade, um best-seller detalhado, coube a mim a maravilhosa missão de manipular um jovem médico vaidoso, em disputa com seu famoso empregador, Lorde Byron, e fazer com que ele usasse o homem para criar um modelo aristocrático, lascivo, de acordo com o desejo oculto dessa sociedade hedonista em vias de abandonar a carolice. Eu criei minha lenda.
Agora um novo Azazel (porque este era também o nome do “bode expiatório” do Levítico) parecia estar surgindo. Era um rapaz inteligente, que adorava latim e grego e começava a reunir membros da sua comunidade. O governo havia decidido “revitalizar” uma área da cidade. Ficava fora do cinturão das ferrovias, que embelezavam o centro com colunas de bronze galvanizado e arcadas transversais. Mas era próxima o bastante para atiçar a cobiça. Na verdade, ela havia sido degradada (foram mesmo fechados alguns bares e festas) de modo que, deserta, se tornasse morada dos viciados. Assim o governo pretendia remover os moradores do local e dar direito a empresas amigas de ganhar com as novas construções.
Nosso Azazel foi procurado uma noite pela Condessa Z. Ela tinha a mesma idade de Vlad e havia se mantido afastada, considerada até mesmo louca pela nova geração de não-mortos. Ninguém poderia acabar com a Condessa sem levantar de suas tumbas Os Anciãos, que ficaram quietos até mesmo com o fim de Drácula. Eu enviara um espião obour para ouvi-los, através do qual eu via a cena.
- Não tema. Sou uma vampira decidida a ajudá-lo. Isso já foi longe demais. Eles o chamam de Azazel. Eu conheci o verdadeiro demônio Azazel e posso assegular-lhe: ele não é parecido com você.
O rapaz tremia na rua deserta.
- Você já deve ter ouvido falar da lendária cidade de Angria. Ela não é história para assustar crianças, nem, como dizem, uma cidade-manicômio. O povo está já insatisfeito, pois lá a dominação foi mais implacável.
O rapaz olhava para a bela vampira, que aparentava quarenta anos, com misto de pânico e atração.
- Ouça. Esse poder que eles defendem, a hegemonia da burguesia, o império, o patriarcado, está apodrecendo. Eles culpam os judeus, os artistas, os homossexuais e as mulheres liberadas por isso, mas o que eles não podem entender é que as pessoas estão cansadas da metafísica cientificista do universo mecânico. Que a magia quer ressurgir. Que, desde os gregos, a natureza é chamada “divina”. Como queria Plotino, um ser belo que se espalha por tudo, do qual participam todos os seres sensíveis. Eles insistem em dizer que a sífilis, a depravação sexual e a revolta política vêm dos estrangeiros...
Ele parecia estar imaginando que a vampira era realmente louca.
- O que a senhora quer de mim? - ele pode por fim dizer.
- Eles contratarão os maiores especialistas do país para justificar os projetos de demolição e as expulsões. Um informante me contou que eles pretendem iniciar uma onda de assassinatos misteriosos, de prostitutas, vagabundos, imigrantes, e acharão uma forma de incriminá-lo. Usarão a imaginação fervilhante das pessoas, reprimidas por uma vida de produtividade exaustiva, para falar do seu bairro como antro de homens-monstro e sugadores cheios de luxúria, seres das catacumbas a céu aberto, labirintos negros e canais putrefatos.
- Quem são “eles”?
- Plano antigo. Começou com alguns assassinatos. Em 1872, desapareceram, em circunstâncias desconhecidas, os dois censores do Estado russo, os quais haviam censurado "Ética" de Spinoza, o "Leviatã" de Hobbes, o "Ensaio sobre a história geral" de Voltaire, mas que pretendiam aprovar a publicação de um livro de 674 páginas, que consideravam inofensivo por ser difícil, falar do muito diverso “sistema capitalista inglês” e ser estritamente “científico”: O Capital. Os novos censores vetaram o livro. Logo em seguida foi assassinado, nas mesmas circunstâncias, o nobre de ideias liberais Ilia Ulyanov, que deixou um filho, o pequeno Lenin, o qual nunca ouviu suas histórias sobre a negra exploração dos servos nos campos. Sem um “terror demoníaco”, não haveria porque pensar em mudanças.
Tendo descoberto algumas das revoluções científicas em curso, assassinaram seus pesquisadores e decidiram restringir o conhecimento humano ao vapor, à "eletricidade animal", ao eletrofluído dos carros, aos balões e à transmissão sem fios, porque perceberam que a tecnologia, democratizada, faria ruir a sociedade aristocrática. Evitaram também grupos fascistas, percebendo que uma grande guerra, com a destruição dos antigos valores e falta de mão-de-obra, faria refluir o evolucionismo que dava legitimidade à competição desenfreada.
(...)