Educação
[dramaturgia - fragmento]
A peça se passa em três tempos: presente, onde estão a prostituta Andrômeda, a transexual Julia e Mateus, um cliente; 1970, onde estão Ariel, estudante de Engenharia, e seu pai, e Iaema, sua namorada; 1989, onde estão Andressa e Eveline, um casal de lésbicas e George e Paulo, um casal gay.
Vozes em off – Neste ano nossa peça vai falar. A nossa escola. É uma experiência.
- Filho, como eu vou te ver de mão dada com outro homem. Prefiro ver você morto.
- Você é feia, fala errado, mora no fim do mundo e é pobre. Não pode entrar nesse grupo.
- Nordestino filho da puta, volta pra tua terra.
- Gente sem educação! Eles não esperam as pessoas saírem do vagão pra entrar!
- Sou contra bolsa. Eu não vou estudar na mesma universidade que marginal da periferia.
- Tudo bem ser morena, mas alisa esse cabelo, vai. Gerente com cabelo ruim afasta o cliente.
- Professora o caramba, você é uma velha e é meu pai que paga teu salário.
Andrômeda: Então eu penso: O que é educar. Senão. Saber como lidar com os outros? Como abrir espaço. Para.
Andrômeda e uma funcionária na loja.
Funcionária - Olha moça, crediário não dá.
Andrômeda - Eu tenho residência fixa.
Funcionária - A senhora. Tá na sua cara que a senhora não trabalha.
Andrômeda - Senhorita.
Funcionária - Senhora, senhorita, o caralho.
Atuante - Vemos duas mulheres num carro, um homem aponta uma arma para uma delas. A outra reage e leva um tiro. Estamos em plena epidemia.
Vemos um jardim, um cachorro e uma mulher que passeia por ele. Agora. O cachorro desenterra um osso. Humano.
Vemos um homem em um hospício, recebendo choques. Em plena Copa.
Atuante 2 - Os dois trens bateram exatamente às 10h. O presidente do sindicato diz que foi falha mecânica. Que há vinte anos não se investe no sistema. Teve gente caindo no chão e indo pro hospital. Se fosse sem maquinista, como na linha privatizada, os trens teriam batido à 80 km por hora. Seria uma tragédia. É preciso aprender.
Se ouve apenas as vozes de Andrômeda e Júlia, esta enfaixa o pé daquela. Num telão, ou em um faicho de luz, os pés e mãos.
Andrômeda - Eu saí tão doida que nem.
Júlia - Fica quieta. Vou deixar tão apertado que amanhã. Amanhã nem vai sentir dor.
Andrômeda - Cuidado com minha circulação. O que seria de mim sem minha traveca velha.
Pai de Ariel - Com isso você vai viver com dignidade. E essa criança.
Paulo - Eu só queria viver com dignidade. Até morrer.
Júlia - Essas porcas eu não cuido. Essas aidéticas. E olha que já botei muito macho pra correr.
Andrômeda - Elas tem é inveja de você. Você lê muito.
Andressa – Eu queria um filho com minha namorada. Meu pai me ensinou a mentir.
Iraema - Você lê muito. Duas faculdades...
Andrômeda - Você lê. Às vezes, eu penso: sem cultura o ser humano vira bicho, um verme enorme e branco, com um buraco para encher de comida, um ponto saliente que dá prazer e solta gosma, outro buraco para expelir o lixo. Sem educação a gente.
Ariel - Meu sonho é a educação. Só assim esse país vai pra frente. Tantos miseráveis..
Júlia - Minha linda, você tem bom coração. Procure sempre progredir. Mantenha sua mente viva.
Andrômeda - Eu queria sumir da face da Terra.
Ariel - Gosto de ensinar. Esses caras tão aí porque as pessoas querem só isso. Querem segurança e nada mais.
Júlia - Progredir, gata. Dá logo um golpe nesse sujeito e foje com a grana dele.
Andrômeda - E meu filho, gata? Quem vai ficar com minha cria? Quero ter dignidade. Me diz como. Não é fácil.
Atuante - Passageiros aumentam, mas governo reduz investimentos no metrô.
Pai de Ariel - Com isso você vai viver com dignidade. E essa.
Iraema - Dignidade? E o pai dele? Velho escroto.
Pai - E esse. Bem ou mal.
Iraema – Mal. Você é um velho escroto. É por isso que vou ficar com seu dinheiro. Vou te ensinar que você não sabe nada.
(...)
Afonso Lima
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