[Nota
do Editor - Poucos contos desse escritor - Trebreh Egroeg -
sobreviveram. Este, que teve nobre descendência, tendo sido citado
pelo proeminente John Burke, despertou minha curiosidade, mas levei
anos para encontrá-lo. Como é comum, nos escritores desse período,
certa ingenuidade e exagero que desafiam nossa identificação. O
mais notável era que, de fato, Trebreh fora famoso matemático e
cientista amador. Achei-o na Biblioteca Nacional, finalmente, em
antiga coletânea de ficção científica. Ele prova de modo
categórico que, ao contrário do que se diz, não suspendemos a
descrença como leitores: sabemos todo o tempo que é algo novo e o
queremos.]
Se
até agora evitei contar minha história, é porque a calúnia e a
ignorância sempre afetaram meu espírito doente.
Morávamos
na planície, na vila ao lado do canal e próximo aos penhascos
avermelhados de indescritível beleza do lado Norte da ilha. Eu
dedicara meus dias à construção de lentes e ao estudo do papel da
teoria na ciência. Buscava materiais inusitados, unia teorias, ouvia
palestras de diversas áreas. Um amigo enviou-me fatias grossas de um
tipo estranho de cristal, que afirmava ter propriedades inusitadas.
Logo em seguida, ele faleceu e não pude averiguar detalhadamente sua
origem e composição. Mergulhava no estudo da luz e, ao mesmo tempo
devaneava sobre a matemática como estrutura das coisas, como faziam
os antigos, que viam a relação entre proporções da alma e do
cosmos.
Acabei
criando um instrumento magistral, capaz de visualizar com perfeição
as mais longínquas paisagens. A teoria comum diz que o céu
sobre nós é infinito e que os astros que vemos brilhar são,
na verdade, fogos imensos à distância inimaginável. O senso comum,
entretanto, desaconselhava a especulação sobre a natureza: "Um
dia perdido não volta", diz o provérbio. Certa vez, porém,
apontando meu invento para ele, algo estranho ocorreu.
Eu
vi como uma luz fraca que fosse refratada e não um espaço vazio.
Nada conforme às precisas leis da óptica. Passei algumas noites sem
dormir, em estado de pânico.
Algo
na composição do material estaria gerando isso? Eu sabia tratar-se
de algo assim, mas não tinha conhecimentos nem coragem de buscar
ajuda. Lembrava-me de um professor na Universidade que dizia: "Se
algo novo é descoberto e não se enquadra nas leis científicas
existentes, modificamos as leis da ciência para acomodar o novo
fenômeno".
Lembrei
que os antigos falavam do lekton, a linguagem, o sentido,
como um dos incorporais que estruturavam o universo. O lugar, o tempo
e o vazio precisam da lógica como elemento fundante.
Escondia-me
no mais escuro da madrugada para observar o fenômeno. Algo ainda
mais assustador aconteceu: pareceu-me ver, desfocado, algo como -
maldito seja eu – o que seria aquilo? Era como se o material
mostrasse um pouco meu próprio rosto. Fui tomado de intensa agitação
e fiquei dias entre a melancolia e a insônia. Minha esposa se
preocupou. Por fim, sonhei com o terrível olhar - cansado,
solitário, como os ansiosos olhos de um comerciante. Voltei ao céu.
Esperei algumas noites. Finalmente, o fenômeno se repetiu.
Convencido
estar passando por uma espécie de delírio, fruto do intenso
trabalho científico, retirei-me para nossa casa no campo e deixei as
aulas na Universidade. Minha filha foi morar comigo para dar-me o
mínimo de conforto. Mesmo assim, sonhava com um homem triste,
infernizado por uma mulher extravagante, com um enteado feroz e uma
enteada rabugenta. Eu via uma loja com crânios de tigre, aquários
vazios, peças de xadrez, armaduras e punhais.
Um
antigo filósofo afirmou que "os átomos são fisicamente
indivisíveis, e não há motivo para um átomo não ser tão grande
como um universo". É preciso dizer que, dentre as filosofias conhecidas, existem as mais bizarras – uma teoria nunca é
verdadeira ou falsa, e mesmo duas teorias opostas podem conviver.
(Uma piada do meio diz que um físico natural nada mais é que um
artista do método). Haviam aquelas teorias que falam do universo com
uma estrutura semelhante a uma árvore de histórias paralelas e
alternativas mutuamente excludentes e até mesmo como um conjunto
complexo de "bolhas" com contato limitado. Já se propôs
que múltiplos universos estariam em expansão alternada: haveria uma
energia estática do cosmos que converteria constantemente energia em
matéria (teoria dos buracos no queijo). Recentemente se têm falado
sobre a interferência do observador como intrínseca e de como a
"realidade", em determinado nível, seria apenas a soma de
diferentes possibilidades excludentes calculáveis. Algumas
propriedades poderiam mesmo ter origem em dimensões físicas
invisíveis, que “vazariam” por uma “membrana” que ligaria
universos.
Acabei
contando meu segredo à minha filha. Ela ficou muito perturbada e
chamou um médico.
Que
deveria eu fazer? Destruí minhas anotações e meus inventos.
Dediquei-me à literatura. Deixo esse manuscrito, na esperança de
que alguém... Não, não tenho esperança.
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