No cemitério
Fazia mais de uma década que eu
não retornava à minha cidade natal. Eu chegava à frente desse túmulo com um
misto de reverência e nostalgia. João Fernando Peixoto de Andrade, escrito na
pedra. Uma inteligência brilhante, um homem que poderia, como se dizia à época,
ser de “Estado”. Seu sobrinho, ao meu lado, me guiara até ali.
Aposentei-me como advogado, mas
na época de minha juventude servira como soldado. Durante os anos de nossa
adolescência, fôramos amigos inseparáveis, mais que irmãos. Descortinava-se
para nós o nome de filósofos antigos, de literatos franceses, nos quais um
introduzia o outro com frenesi, e discutíamos até mesmo o ocultismo, a
sociologia e o positivismo, e as seitas herméticas e pitagóricas. Ele tratava
com pessoas de todas as classes com eloquência e simplicidade dignas de um
diplomata. Conhecia tudo e demonstrava modéstia que encantava a todos – no íntimo,
eu pensava que não era páreo para ele, e sofria por meu orgulho em não admitir
publicamente sua superioridade. Escrevíamos poemas, Lamartine, de Nerval, Apollinaire e Verlaine esquentavam nosso sangue juvenil. Quantas
vezes chegamos a dormir encostados para fugir ao frio das noites nos capões,
depois de uma caçada ou pescaria, enquanto nossas roupas secavam ao fogo.
Ambos entramos no exército na
mesma época. Ele, condecorado por bravura em seguida, logo já tinha sua cota de
maragatos mortos. Eu seguia sem volúpia minha vida de soldado raso. O destino
quis que ele se tornasse meu superior, bem na época em que eu casava com uma
moça escolhida por minha família, mas que me deixou contente. Eu mesmo tratei
minha esposa como um cavalo faminto, talvez por uma educação demasiado puritana
e uma juventude toda de freios curtos, e ela, apesar do interesse inicial, logo
me pareceu fechar-se e esconder algum segredo. Entretanto, na minha
imaturidade, achava até indecoroso tentar desvendar as tristezas do coração
feminino, às claras, não tendo sequer paciência para isso. Eu procurei meu
amigo assim que a novidade do casamento passou, pois sempre me vinham à mente
nossos bons momentos, mas ele se tornara frio e distante.
No trabalho, reprendia com
severidade meus erros comezinhos e chegou a me humilhar na frente do batalhão. No
início, porém, essa brutalidade era temperada ora com uma discussão sobre
Wagner, ora com o comentário sobre uma nova crítica ou livro de beleza sublime
(fomos uns dos primeiros a ler Proust, ainda em francês, e se discutia se seria
reflexo de um esnobismo decadente ou o maior romance da literatura do século). Mas,
por vezes, eu o via olhando-me com uma dureza assustadora. Pensava se isso não
se devia ao seu leito frio, mas não tinha coragem de tocar no assunto. Percebi
que cheirava à uísque pelo menos uma vez por semana. Eu o vi dar socos e bater a
cabeça na parede, numa madrugada, chorar bêbado como um miserável no canto do
banheiro, e, certa vez, tive de defender um pobre cão de sua violência. Começara
a me interessar pelo violino (somente minha total falta de talento me faria
desistir finalmente) e pelos casos sensacionais e polêmicos do tribunal - minha
paixão se acendia, obliterando todo o resto. Minha mulher cedo contraiu uma
doença que exigia constantes cuidados e minha alma se tornava também instável e
sombria.
Certa vez, por um descuido meu, a
vida de colegas foi quase posta em risco, mas eles mesmos tomaram isso como
falha de avaliação ou percepção confusa; enquanto meu general puniu-me
gravemente condenando-me a um mês de solitária, segundo se disse, instigado
pelo meu “amigo”. A partir daí foram inúmeras as armadilhas em que me meteu, e
eu passei a viver desnorteado, sem saber direito em quem confiar e onde pisar. Percebi
também em mim um pensamento mórbido e obsessivo por sua pessoa – quais os
motivos, como essa transformação se dera, onde eu errava e onde ela erraria? Sua
foto nunca deixou de adornar minha cômoda, como a de um modelo de erudição e
linguajar elegante, o que irritava sobremaneira minha mulher. Por fim,
abandonei meu serviço, passando a morar novamente na cidade vizinha com meus
pais, o que durou um ano.
Em breve, minha esposa veio a
falecer, e achei-me em negra desgraça - pois, como me diziam, uma casa sem descendência
é como um capim seco – sombra apenas amenizada pelo estudo infatigável das leis.
(Mais tarde adotaria duas crianças, filhas do meu empregado). Além disso, nas
noites, insone, dizia para mim mesmo que nunca amara essa mulher verdadeiramente,
mas fora o tempo todo egoísta e inacessível. Quanto ao nosso homem, quanto
mais subia, mais amargo e cruel a todos se mostrava, e parece ter repetido aquela
forma de agir; uma conspiração sua logo foi descoberta, tendo sido expulso da
companhia. Ouvi agora que João foi morar numa casinha num mato e viveu
pobremente (a criação de um tipo de cão grande de caça parece ter sido sua
renda e, talvez, algum contrabando), muito solitário, arrastado pela bebida,
até seus últimos dias. Pelo menos uma vez por semana, tiros eram disparados no
lago vizinho, assustando à todos.
- Que estranhas emoções se
aninham nos corações humanos, quantas cavernas escuras – disse o sobrinho.
Encontrei três cadernos grossos cheios de sonetos na sua tapera rude, dedicados
ao senhor. Apesar do ódio, prevaleceram as lembranças de ensolaradas conversas
sobre as possibilidades de uma vida a ser escrita – disse, entregando-me o
material ricamente encadernado. Eu sentia o mesmo, assim como um
incompreensível remorso.
O trabalho No cemitério de Afonso Jr. Lima foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Podem estar disponíveis autorizações adicionais ao âmbito desta licença em http://afonsojunior.blogspot.com.br/.
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