Depois das guerras religiosas, a
classe média entregou aos duques seu poder e passou a viver um liberalismo
ilustrado, duas cidades divididas por uma ponte. Uma, erguia a Natureza como
Deus e queria apagar as crenças injustificadas; outra, a ortodoxia, achava que
o corpo era pecaminoso e pregava o espiritualismo; uma terceira cultuava o Zero
e o sublime K. Debates sobre qual delas tinha a verdade seguiram por anos na
Universidade Central e o Acordo era que Desenvolvimento e Instinto seriam
democratizados. Dominava, nos meios eruditos, a Engenharia, a Gramática, a
Linguística, a Numismática e a Cronologia. Os leigos consumiam ferozmente
livros, a Turística, a Culinária, a Estatística.
O rei era racionalista,
pregava a tolerância e valorizava a ópera. Naun, que vinha do campo, adorou o
trem de cristal, amarelo, que andava sozinho. Perguntou a um homem de gravata
onde se comia ali. Se tiver dinheiro, em qualquer lugar, voava, usando uma
teladetoque projetada na palma da mão. Os prédios eram altos para ficarem mais
arejados, os homens dormiam nas calçadas para ver as estrelas, as placas eram
brilhantes para que ninguém se esquecesse de comer.
Perguntou para um operário
de onde vinha tanto metal: Havia uma indústria naquele morro, apontou, agora
está desativada e sem manutenção – o zinco, o cádmio, o mercúrio e o chumbo
estão poluindo o solo e o rio, mas vamos resolver isso assim que possível,
afirmou. Vocês têm livros aqui, perguntou a um varredor de rua. Sim, naquela
livraria. Achou uma pobreza. Na aldeia, velhos haviam salvado placas de metal
onde alguns monges gravaram versos e fragmentos. Ali, o que mais se via era
“poesia”: São regras para ganhar a vida, disse o vendedor.
Foi até a Praça
Maior, onde a aristocracia governava a cidade. Eles são sábios, têm olhos
distantes, pensam apenas em escala global, na vida futura das massas, disse um
vendedor de frutas ao pobre Naun. Uma vez por ano, nessa praça, temos a
Assembleia, onde se vende incríveis trouxinhas de maçã adocicadas. Um asceta,
sentado nas escadas, discursava. Parecia mais um canto, na verdade. Ele dizia:
“Um rei amava seis três filhos e não sabia a quem deixar sua herança. Fez duas
cópias idênticas de seu anel real. No instante da morte, o pai, secretamente,
deu a cada filho o seu anel. Após o desenlace do pai, os filhos disputaram
entre eles a posse da herança e da honra. Cada um negou aos outros qualquer
direito. E, para testemunhar que podia assim agir, em sã consciência, cada um
deles apresentou o seu anel. Ao se constatar que os anéis eram tão iguais, que
não se poderia identificar aquele que servira de modelo estabeleceu-se o
problema de saber quem deveria ser o legítimo herdeiro do pai. O problema ficou
sem solução – e ainda o está”.
© Afonso Lima
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