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sábado, março 08, 2014

Aloraab

Correu na aldeia a notícia de que o garçom Aloraab tinha tido uma visão de Deus. Em sete dias deveria sacrificar aquela criança. Apenas contou isso a seu porco, criado desde pequeno em sua casa (alguns diziam criado como gente, humanoide, pelos gritos que dava). Aloraab arrumou a casa, acendeu as velas, fez um último bolo, limpou a foto e trocou as flores da mulher morta que cultivava em um altar, costurou sua capa de carneiro, deu milho para as galinhas, passou óleo nas juntas das portas para que o vento do inverno não as fizessem gemer, cortou a lenha, juntou as folhas do jardim, deu de beber às cabras, engomou a gola de sua roupa domingueira, verificou o encanamento, tirou a neve da frente da casa, fechou vidros de compota para que não fosse pego de surpresa, comeu gengibre e tossiu para limpar a garganta, limpou os dentes com finos galhos e saiu. O filho agora era um belo jovem que ficava os dias entre as colinas servindo de inspiração para moças e rapazes e apartava as ovelhas. Nesse meio tempo, nascera de dentro dele mais uma criança, essa sim estranha, como um ovo de mármore. Nunca chorou nem cresceu. Aloraab levava o filho mais novo por todos os lados, e as pessoas brincavam com ele sem entender (a criança revelava novas linguagens, constrangendo a todos). Por fim todos esqueceram do outro filho. Todos tinham Aloraab por uma espécie de santo - porque um dia cumpriria uma profecia, mas o esquecimento fez com que todos evitassem nomeá-la e, evitando nomeá-la, a profecia tornou-se secreta e impraticável. Por algum motivo, começou a sentir vergonha e deixou de ir na taverna onde servia. Seu filho começou a definhar e ele o enterrou ao lado da casa; o irmão mais velho fugiu para as montanhas. O único amigo do homem passou a ser seu porco, criado desde pequeno em sua casa. Ele lia para Aloraab em seu leito. Ele varria a casa. Muitos duvidaram que fosse um porco, já que parecia nunca ter medo da morte. O único que lembrava da missão era Aloraab e ele se jogou dentro de um poço num dia cinzento.

Afonso Lima

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