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sexta-feira, julho 03, 2015

A divisão

Estou no cinema prestes a assistir um filme francês; eu e uma moça começamos a conversar; comento que fiquei sonolento em alguns trechos de "Made in EUA" do Godard, apesar de adorar o filme, deve ser sono acumulado; ela me diz: "Mas é que é preciso conhecer filme de arte, você conhece?"
Então imediatamente eu penso isso:  se você não conhece uma pessoa é mais fácil imaginar que ela é desinformada. Como chegamos a esse grau de esnobismo?

Um funcionário da minha imobiliária está no prédio e aproveito para passar alguns problemas que o edifício está tendo. Ele repete toda hora - "mande um email", como havia feito muitas vezes. Eu acabo deixando escapar uma certa irritação, mas ele diz: "Se eu falar não é a mesma coisa". 
Lembro então de um relato não lembro se em jornal ou livro. Alguém comentou que nos EUA os funcionários do balcão de um aeroporto podem resolver tudo, e que aqui a primeira coisa que fazem é chamar um supervisor. 
Isso deve dizer algo da nossa sociedade...

Ainda: em um evento com o ministro da cultura, da Bahia, ouvimos ele dizer: "Quanto mais nos afastamos do centro de São Paulo, mais as pessoas são feias, excluídas, maltratadas". Levo um choque. Mas será que devemos maquiar isso? (Um segundo momento, claro, é criticar os modelos de beleza, mas vivemos sob o império do sexo, a principal atividade da burguesia é seu corpo.) Devemos aceitar a imagem de meca da meritocracia? E será que Salvador tem, afinal, outro fator de igualdade, a pessoa não é apenas lucro e imposto?

Ao mesmo tempo, ele foi até a Brasilândia, ouviu as pessoas talvez pela primeira vez. Foi cobrado justamente porque os outros sequer ouviam as demandas e faziam do governo um intermediário nos negócios. Numa cidade onde até mesmo o nome "patrimônio cultural" parece uma ameaça ao sistema imobiliário e "tombamento" é um crime.

Grande parte da população dos bairros mais afastados mudou: está na faculdade, veste-se bem, sabe usar as redes, agita. Mas vamos esconder que São Paulo recebeu os trabalhadores pouco qualificados (enquanto a censura evitava greves) e deixou seus descendentes vivendo em bairros abandonados e violentos? O imaginário de uma cidade como São Paulo (complexa, o que permitiu mobilidade social e afastamento de padrões rígidos) infelizmente é de "informados" e "informáveis", dirigentes e dirigidos, "locomotiva" e "carga": estranho mesmo a palavra "periferia", hoje apropriada como forma de autoafirmação. Os herdeiros do imaginário dos barões de café pensam que tudo pode seguir como está, é o fascismo do esquecimento. 

A divisão horrenda do Brasil está cobrando seu preço: o deputado mais votado é alguém que "defende o consumidor", ou "defende a família e prende o bandido" porque essa é uma política e uma "proteção" compreensível, mas simplista. Agora, vivemos simplesmente um Congresso quase absolutista (pequenos partidos pós-ideológicos e um presidente com uma agenda conservadora e disposto a usar todas as artimanhas possíveis para curvar a lei ao interesse), um total desprezo pelo que a sociedade pensa, ou, pior, a apropriação da política por discursos pouco racionais e pelas piores escolhas. 

Acabar com os direitos do trabalhador, ameaçar os índios, prender no Carandiru os adolescentes infratores, entregar o petróleo... A falta de educação, que reforça preconceitos, chegou ao poder e vai reforçar a falta de educação (excluir o debate sobre gênero e homofobia, por exemplo). Ao mesmo tempo, é a ditadura do discurso, na qual pessoas sem casa se tornam "moradores de rua". Na linguagem do realismo-editado se mina a autopercepção da maioria oprimida. Dizem que uma das formas de Portugal dominar o Brasil, continental, foi evitando as estradas e a comunicação entre as regiões...


Afonso Lima

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