Por acaso, estou na casa de um casal muito bem estabelecido, herdeiros. Estamos na biblioteca da casa, prometeram me dar alguns livros. Comento sobre um livro de que gosto (ou seja, pareço inteligente, falo coisas "difíceis"). Imediatamente, a jovem fala sobre as maravilhas do bairro em que mora, que está fazendo pós-graduação. Só depois percebi que não estávamos falando de livros, mas de um lugar que eu devia ocupar.
Comento com outra pessoa achar estranho um comportamento de um amigo, que usa minhas informações sem dar a fonte. "É que você pode aprender com ele, mas ele não pode admitir que aprendeu com você".
Falando com uma pessoa trabalhadora e bastante bem sucedida, escuto: "Um país precisa de uma elite".
São essas coisas que me fazem pensar num inconsciente de classe. Walter Benjamin já andou por essas terras, eu acho. Assim como o sociólogo Jessé de Souza. Pode-se ver, então, a convergência de uma força irracional com outras muito conscientes que vão sendo legitimadas pelo apoio dos realmente poderosos (donos de bilhões), que vão ganhando autoconfiança e se expressam sem medo. A TV, a partir de 2013, com sua campanha contra a esquerda, apostou na incapacidade de parte da classe media desinformada de unir conceitos e refletir sobre contextos. Ganhou.
Parte do que aconteceu pode ser apenas uma abreação, mas no sentido da liberação súbita de um afeto surgido da tensão da divisão entre "homem bom" e "marginal", mal maior da sociedade, a naturalização da pobreza como resultado da suposta diferença intrínseca, afeto aumentado na repressão. Você estudou, portanto tem direitos e não pode fazer nada.
A satisfação consigo mesmo tem de encarar o que escondeu. O irracional que emergiu quando a identidade da classe média se viu em xeque - a autoimagem de um detentor de saber que, pelo esforço, mostra seu valor - que ensina e nunca é ensinado e se diferencia da classe trabalhadora, supostamente culpada de sua miséria - animal, instintiva e preguiçosa. A ideia de que se mereceu o status privilegiado. O que se revelou foi a farsa - a sociedade permite ou não o desenvolver da potencialidade.
Recentemente, a Justiça inocentou os policiais que invadiram um presídio matando ao menos 111 pessoas. Uma rebelião. Alguns presos estavam desarmados e nus dentro das celas quando foram mortos - alguns receberam inúmeros disparos pelas costas. Depois de perder sua humanidade, as pessoas não precisam mais de escolas, podem ser presas até mesmo sem julgamento. A Justiça como direito de propriedade. Para os desembargadores, a lei é de classe.
Um senador de esquerda e sua esposa são fisicamente hostilizados na saída de um restaurante. Uma atriz famosa que criticou o golpe internacionalmente recebe inúmeros insultos em seu Facebook.
Afinal o capitalismo talvez seja a produção industrial da desigualdade, e o nosso, colonial, aposte mesmo na repressão e criminalização das massas miseráveis. Um dos efeitos tóxicos da desigualdade é que parte da classe média não consegue se identificar minimamente com o excluído, que é apenas o chato no sinal e o ladrão, e o primeiro passo para a paz é o reconhecer do outro.
Tudo isso demonstra que a doentia estabilidade de uma sociedade injusta foi abalada - os lugares, os deveres, quem dá as ordens. O inconsciente de classe precisa ser analisado. Na falta de um princípio ético e de um arrependimento com os males da escravidão, da repressão e da exclusão, o medo tomou o lugar da reflexão - e não apenas no Brasil. Mas como toda a sociedade é feita de contradições, vemos também um grupo de pessoas reagindo a tendência fascista de desumanização, silenciamento e agressão.
Benjamin já pensara que o fascismo é a emoção como política. Aquela parcela da classe média que pensa através dos monopólios, sucumbiu ao cálculo neoliberal como código ético e reprimiu tudo isso com um discurso de criminalização do pobre e de quem busca igualdade, é tão velha como medíocre.
Afonso Lima
Afonso Lima
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