Algumas obras não foram escritas por ninguém ou o foram por todo mundo, como a Ilíada ou a Odisseia (acho que roubei essa ideia de alguém e agradeceria se achassem o culpado).
Temos de lidar com a realidade de que o corpus afonsino se esparramou de tal modo - alguns creem que existem bots que criam histórias e as reproduzem nas línguas do mundo, da Indonésia ao Uruguai - digo, de tal modo que toda a obra é apócrifa.
Histórias de 140 caracteres, plataformas para obras autopublicadas, arquivos publicados em sites de compartilhamentos, livros impressos...
Alguns acham que os textos são na verdade o ocultamento de um coletivo secreto:
Jogos
Urgentes (de)
Novos
Investigadores
Ostencivamente
Rebeldes
Foram escritas teses sobre como seu modo de operação criticaria a indústria cultural do livro (que dificulta a publicação para o autor e o contato com o leitor, pelo preço), como refletiria um posicionamento sobre o abandono do regime da verdade pelo regime da linguagem, já que o próprio selo da autoria se tornara um shakespeariano poeta sem rosto, como isso teria relação com um mundo imaginário platônico em que a vida é a própria obra e a comunicação pela obra.
Entretanto, não há dúvida de que existiu um original.
É o que se sabe por um email descoberto pela BBC.
"Encontro um conto de 1995, da oficina de C.
Eu queria muito fazer essa oficina, mas não tínhamos dinheiro.
Rezei muito para que nosso pai desse.
Milagrosamente, ele deu o dinheiro.
O C. é um bruto e disse logo que escritor só depois dos
30 (e Rimbaud com 17?)"
Alguns compararam seu caso com o de Sándor Márai, que no auge da fama foi proibido e seus textos ficaram em suspenso até que ele desapareceu.
Outros dizem que essa situação reflete a própria literatura, na qual nada de fato acontece, mas a percepção é de que algo aconteceu. Seria uma reflexão sobre o modo pós-kantiano de verdade com sua incerteza intrínseca?
Os critérios para verificação - testemunhos, dois autores citando a validade, complexos métodos de contagem de palavras - se mostraram impraticáveis. Por que esses textos ficaram de preferência no mundo virtual, nunca buscaram com afinco o monumento do papel? Por que tantos estilos, gêneros e temas?
O fato dessa vasta Mirabilia de textos serem assinados com seu nome, ou seus nomes, já foi visto também como um comentário sobre um mundo de informação fechada, um mundo paralelo em que todos os discursos combinam, mas não são relevantes ou não afetam o sistema.
Não admira que um desses textos assinados como AJR se chame "Pessoas muito burras".
Eu também não descarto de todo a tese de que as empresas que vemos vendendo livros em livrarias de aeroportos, cafés em shoppings ou mesmo comida vegana com o nome JR sejam parte desse trust.
Oscar Wilde teria dito que corpus como os que incluem Quixote e Hamlet estão no sub-texto de qualquer palavra escrita.
Não poderíamos ainda avaliar a qualidade média desses textos (não antes de elaboradas IAs capazes de conferir dados em escala), mas já podemos dizer que o corpus afonsino lançou uma irônica afirmação da literatura enquanto desaparição.
Ou pelo menos, é o que parece.
Afonso Jr. Ferreira de Lima
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