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segunda-feira, março 19, 2018

Entropia

Deixo neste diário algo que só virá à público talvez depois de minha morte. Não sei o que ocorreu e nem como tudo teve um resultado tão preciso. Mas devo registrar aqui o que ocorreu. Eu sei escrever.
*
Acordei no dia do meu aniversário com a luz cinzenta do outono. Minha mãe me deu um abraço toda contente, íamos até as cavernas fazer aquele passeio que eu tanto queria.
Nosso escravo preparou o café e me desejou boa sorte.
O recepcionista da pousada disse que estavam com um pouco de medo, havia ocorrido um acidente com um memória alguns dias antes. Ninguém sabia ainda a causa.
O homem de barbas brancas nos recebeu sorridente.
- Havia um tempo, ele disse, em que se grafava a alma em pedras e superfícies macias. Agora, somos nós. Sobre o que você deseja saber?
- A origem dos cadáveres escravos, eu disse.

*
Acordei com uma espécie de zumbido no ouvido, um vento de outono. Demorei para ver o que estava ao meu redor. As paredes, o chão, os móveis. Levantei com um pulo. Eu não deveria estar no quarto da pousada?
Coloquei minha roupa e desci.
- Mãe? Isso é um sonho?
- O quê meu amor? - ela disse.
Eu fui até meu quarto de novo - sem querer quebrei o vaso oriental perto da escada - e olhei meu calendário. Faltava um dia para meu aniversário.

*
O vaso oriental estava inteiro.
Meu pai chega para me visitar.
- Não poderei estar aqui no seu dia.
- Pai, você ouviu falar de algum acidente com um memória?
- Você precisa parar com essa obsessão com o passado. Não serve pra nada. O que produz são os números. Você vai acabar preso como subversivo.
Nosso escravo cadáver ligou a TV.
- Acidente mata um memória na praia 9-200.
- Isso não aconteceu - eu disse.

*
Eu corri até a estação de notícias.
Expliquei para meia dúzia de pessoas que tinha "uma bomba". Finalmente sentei na sala do homem magro e de aparência doentia.
- Amanhã ocorrerá um acidente na praia 9-200. Vocês precisam cobrir o evento - eu disse.
O repórter parecia nervoso:
- Menino, estamos investigando uma série de atentados com bombas e um sequestro. Não venha...
- De quem?
- Um cientista.
Eu levantei e parei na porta.
- São as ideias, percebe? Se os seres humanos não tiverem lembranças, serão fracos. Saí pensando em quem desejaria vingança.

*
Acordei quatro dias antes de meu aniversário.
Antes de minha mãe chegar na sala, perguntei ao nosso escravo:
 - Vocês odeiam os seres humanos?
Ele pareceu perturbado.
- Pessoalmente, acho que já foram uma raça sublime. Vocês decaíram muito depois que... Bem, vocês usam apenas imagens e sons agora.
Ele desligou a água, que fervia.
- Você lembra ano passado, quando os cadáveres fizeram uma manifestação pedindo direito à cidadania? Houve um massacre.

*
Acordei e fui até as ruínas. Um prédio de cimento, várias folhas com símbolos que ninguém sabia ler.
Nas páginas amareladas, a ilustração de um gigante com fogo. É isso! Precisamos explodir a conspiração.
- Você deve saber algo, algo pela sua intuição animal, você precisa me dizer alguma coisa. A revolta dos escravos vai ocorrer - meu escravo parecia muito assustado.
- Se você não me ajudar vou fazer com que te coloquem em segunda morte.

Afonso Junior Ferreira de Lima

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