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domingo, março 08, 2020

Na ilha

Sim, posso contar mais uma vez. Mas, não. Nunca acreditam em mim. Sua família fazia faróis, não é verdade? Por isso está aqui. Talvez compreenda mais que os outros homens.
Mas isso eu tenho que lhe perguntar. O senhor acredita no que escreve? O senhor acha que existe alguma coisa desconhecida? Talvez o senhor acredite mais em mitos que os outros.

Já ouviu falar em Davy Jone? Ele me disse, quando cheguei. "Aqui é a casa de Davy Jones". Os marinheiros dizem isso, o lugar dos que morrem na água. Há uma fábula engraçada. O navio está naufragando, e o primeiro-tenente avisa o capitão. Mas ele era um sujeito muito lido e tudo que disse foi: "A vida é um grande naufrágio". Depois foi no depósito de pólvora e explodiu o navio. São essas coisas que dois homens sujos falam numa ilha escura varrida pelo vento.
Talvez eu tenha ido para lá por isso. Minha vocação era naufragar. Muita briga já havia feito em sociedade. Não adiantou minha mãe dizer que a bebida é o refúgio do homem pobre e sua perdição.

O senhor também está condenado, pelo que me dizem. Fico pensando se seus familiares não o insultam por escrever histórias e não construir pontes, estradas e ferrovias. Os meus me insultavam.
Quer dizer que eu sou seu personagem agora? Quer dizer que o senhor vai moldar minha mente, ouvir minhas palavras, destilar minhas paixões. Mas eu também sei mais do senhor do que qualquer homem. Eu também fugi da cidade sufocante, eu desejei o vasto e o desconhecido. Vou lhe dizer, havia alguma coisa naquela tempestade. Não, não ache que sabe o que é.
O senhor já viajou a pé, com certeza, para ver as montanhas, dormindo em hospedarias, estalagens e mosteiros. O senhor sabe que o vento, e ainda mais a chuva, no ar livre, podem enlouquecer um homem.
O mar me cura. Gosto de suas viagens. Eu também escrevia minhas viagens. Eu também comia pouco, até ter dinheiro para arrancar meus dentes. Eu também fiquei doente e fui cuidado por uma mulher. Mas nunca tanto sangue. Nunca fui sufocado.
Sua influência. Ele a ouviu. Foi isso que o matou. Eu percebi. Em um momento, estavam frias nossas almas, perdemos a esperança. Tínhamos o mesmo nome. Todos sabiam que brigávamos violentamente.
Essa tempestade nos pegou desprevenidos. As ondas foram arrastando mantimentos, barcos, até encher de água a própria casa. Será que foi aí que chegou, quando não tínhamos visão? Meu capitão ficou na torre como que protegendo a luz. Por fim, eu também quis entrar ali, parecia o único lugar seguro.
O que queria? Queria que eu fosse acusado de assassinato? Queria que eu permanecesse o resto de minha vida amarrado a um muro, sem luz, rodeado de ratos? Queria matá-lo? Eu fiquei sozinho ao lado de seu cadáver. Mas quem ia acreditar? O senhor conheceu os nativos. Talvez acredite quando falo que não sabemos nada da natureza. Tentamos roubar o fogo, mas ele é Proteus. Aquele cadáver me observava de olhos abertos. Se eu o jogasse no mar seria acusado de assassinato. Ele começou a se decompor. Eu o pendurei do lado de fora. O vento fazia seu braço acenar. Mas eu mantive a luz acesa até meus colegas chegarem, não sei quanto tempo depois. Me olhavam como se não me reconhecessem. 
Estávamos naufragando desde o primeiro dia. Naufragando porque nos odiamos, porque nos amamos, porque éramos a humanidade. Dizem que sou louco. Sim, senhor, o senhor está condenado. Eu também nunca mais sairei daqui. Aqui é a casa de Davy Jones. 

Afonso Junior Ferreira de Lima 


3 comentários:

Unknown disse...

Interessante !!

Desde a bolsa amarela disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Darla disse...

"porque nos odiamos, porque nos amamos, porque éramos a humanidade"