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domingo, junho 28, 2020

A espera

Era uma simples maçã. Poderia falar horas sobre essa coisa quase redonda e quase vermelha que caía pela calçada ao sol, ela mesma viajandeira desde os cantos mais verdes da cidade, e mesmo desse sujeito pouco produtivo e mais ausente que por um momento observa o vidro quase limpo num dia de quase normalidade. Para na borda. O homem segue colocando frutas na cesta, gordo, indiferente, máscara negra e cabelos brancos. Chega o segundo personagem, o primeiro que vejo são os sapatos sujos, carrega um saco transparente de biscoitos claros, talvez de maisena, outra coisa sob o braço, uma casa, e será que alguém sobrevive apenas de bolachas ou biscoitos de talvez maisena? A tensão toda enquanto ele observa a esquina, talvez buscando outro lugar onde conseguir alguma vitamina, caminha depois em sentido oposto à maçã quase vermelha que parou antes de atravessar a rua. Seria o final mais feliz do mundo, uma semente tão esforçada, tendo recebido seu título, agora serve para aquecer o fogo moribundo de um conjunto de carbonos ameaçados pelo frio que uma nuvem escura promete. Lembro da cena: estou comendo num balcão, um homem pede comida na porta, o dono grita Ladrão!, o homem sai correndo antes que eu possa pensar, tempo, volta sorrateiro e atira uma maça meio mordida para dentro, desaparece. Mais um segundo de espera, a fome e a vontade de correr impedida por alguma força cósmica ou elevação da pedra. Mas ele sai de meu quadrado, o homem avança com cesta, cabelo branco e máscara negra, reconfigura a ordem das pirâmides de frutas. Eu também já não tenho tempo para quase bolas, quase gordos, quase mortos, observo minha tarefa com resignação e bebo meu café.

AJR

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