Carro.
Prólogo
Notícias do dia, coladas nas janelas. Do lado de dentro e do lado de fora.
- Deputada que falar contra o machismo vai ser morta! Anuncia partido do presidente.
- Último povo indígena exterminado com sucesso na floresta amazônica.
- Campo de trabalho forçado para professores foi inaugurado na última sexta-feira.
- Conselho de Direitos Humanos distribui uniformes azuis nas escolas prometendo que os
meninos nunca virarão meninas.
- Policiais recebem “licença para matar” todas as 24 cores de pele do Brasil, menos uma.
Cena 1
Mulher 2, de moleton e tênis, entra no carro. Olha as notícias coladas nas janelas.
Batidas na janela. Mulher 2 abre a porta. Entra Mulher 1, de salto alto, chapéu, frasqueira.
Mulher 1- Pára o carro!
Mulher 2- A gente nem saiu.
Mulher 1- Eu sei. Mas pára. Não to mais agüentando tudo isso.
Mulher 2- Isso o quê?
Mulher 1- Você. Sei lá. O trânsito.
Mulher 2- A gente não saiu.
Mulher 1- Por isso mesmo. É muito sufocante aqui dentro.
Mulher 2- Eu tenho pastilhas. As que refrescam.
Mulher 1- Eu não consigo respirar.
Mulher 2- Quando eu saio com o MEU carro, aquele incrível possante, eu me sinto muito bem.
Mulher 1- Eu não consigo respirar.
Mulher 2- Eu ligo o ar no talo. E o som. Liga o rádio no último volume.
Mulher 1 abaixa o som.
Mulher 2- Por que você abaixou o volume na melhor parte? Ela ia dizer que ama e que vai voltar.
Mulher 1- Eu não consigo respirar nesse trânsito com música.
Mulher 2- Nós estamos paradas.
Mulher 1- Mas há uma expectativa. Duas pessoas sentadas num carro. O arranque.
Tempo
Mulher 2- (Tira a chave da frasqueira) Então lá vai!
Mulher 1- Espera! Pra onde a gente vai?
Mulher 2- Dentro da frasqueira tem um envelope.
Mulher 1- Dentro do envelope há um endereço.
Mulher 2- Temos um alvo.
Mulher 1- E um GPS.
Mulher 1 abre o envelope.
Mulher 1- Por isso que eu não gosto de sair com você. Não tem nada escrito dentro do envelope.
Mulher 2- É feriado! Abre a frasqueira. Vasculha. Pega óculos escuros. Pronto. No feriado as pessoas se divertem. Vamos nos divertir! Liga o som.
Mulher 1- (Desliga) De que pessoas você está falando? Eu nunca me divirto em feriados. Fico entediada. Não tenho dinheiro. Eu quero sair daqui.
Mulher 2- Pois é. Todos querem sair deste lugar. Ainda mais agora.
Mulher 1- Agora o quê?
Mulher 2 – Nada. (Tira o moleton. Fica só de camiseta).
Mulher 1- Dá a partida! Você tem a chave.
Mulher 2- Eu?
Mulher 1- É. Você tem a chave o volante a embreagem o freio a buzina.
Mulher 2- Mas o carro é seu!
Mulher 1- Por favor! Eu não consigo.
As duas se olham. Mulher 2 não se mexe. Mulher 1 vai pra cima de Mulher 2. Embate. Elas trocam de lugar. As duas se olham.
Mulher 2- Se eu me sento aqui preciso do seu chapéu.
Mulher 1- Eu quero seus óculos de sol.
Cena 2
Mulher 1 com óculos de sol. Mulher 2 de chapéu. Mulher 2 tira da frasqueira folhas de papel com paisagens maravilhosas. Praia. Montanha. Deserto. Cola as paisagens nas janelas do carro.
Mulher 1- O que é que isso vai mudar?
Mulher 2- (Colando) A gente precisa se livrar do peso das notícias iniciais. Na vida real sempre existem janelas. E paisagens.
Mulher 1- Na vida real tem sempre uma janela aberta pra se jogar um pedaço de pão ou um abajur. Um cachorrinho ou carrinho de bebê.
Mulher 2- Ahn?
Silencio.
Mulher 2- Há um lugar! Aquele que todo mundo quer ir. Onde se contam carneiros
pulando acima de um arco-íris. Arranca!
Mulher 1- (Vendo o celular que tirou da frasqueira) Não posso. Acabei de ler mais uma. A bala atravessou a menina no trânsito. Ainda bem que não saímos daqui. Me parece mais seguro.
Mulher 2- Sim. Do lado de dentro.
Mulher 1- Ou do lado de fora? Ela estava do lado de dentro e...
Mulher 2- Me dá um medo de sair.
Mulher 1- Eles conseguiram. Me dá um medo de ficar.
Mulher 2- Dividiram a gente.
Mulher 1- Escolhem quem fica vivo e quem fica morto.
Mulher 2- Eu me recuso. Arranca!
Mulher 1- (Chave nas mãos) Você não ouve a imobilidade do ar. As folhas não dançam de um lado para o outro.
Mulher 2- Então?
Mulher 1- Eu vou! Tem um cigarro? Me dá mais coragem. Cinto de segurança, ok. Janelas fechadas, ok. Eu posso fumar?
Mulher 2- Se eles não se importarem?
As duas olham para o público no banco de trás.
Mulher 1- Ela, a menina de oito anos, do lado de dentro da Kombi, voltava pra casa com a sua mãe.
Mulher 2- Cheiro de fumaça no banco. Será que já somos o alvo?
Epílogo
Mulher 1 liga o carro. Tempo. O carro não sai.
Fim.
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