Páginas

Ajude a manter esse blog

sexta-feira, junho 03, 2022

Elas também - e daí? - impressões sobre um julgamento

Vai demorar ainda muito tempo para avaliarmos a importância do movimento Me Too. Se pode imaginar que 30% da humanidade tenha sofrido abuso sexual - e talvez mais no caso das mulheres. ('That's enough': France confronts decades of neglect of incest cases) Não há dúvida de que um sistema todo foi construído ao redor da descrença na voz feminina - a começar pelo policial que não acredita na denúncia, chegando ao juiz que humilha a vítima. 

Mas devemos pensar: sempre que você tem poder - um poder moral também - pode surgir abuso, pode ser usado como forma de generalizar a culpa para grupos ou excluir pessoas para enfatizar superioridade e domínio. Existe o bullying pseudo-progressista (woke bully). Se o medo de afirmar a verdade sufocar a reflexão, quem ganha? Afirmar que se trata de "punir uma mulher que nomeou suas experiências" pode mesmo ajudar a evitar abusos? 

A advogada segue dizendo que ela foi "demonizada" - esquecendo que a acusação não é prova (o que pega muito mal nos Estados Unidos, e talvez seja para criar uma "onda" que leve a reduzir a indenização). Seu grande erro pode ter sido "editar" demais sua cliente, de modo que, quando apareceram falhas, toda sua credibilidade ruiu. Excesso de ficção. Ainda que o melhor que se possa fazer é criar uma teoria coerente com as informações disponíveis, o tribunal deve ser o limite último contra o relativismo - até mesmo o relativismo teórico em moda no pós-estruturalismo. E é por isso que tem sido atacado. 

É chocante o uso da tese de que o resultado "faz recuar o relógio" - é como se o sentido de grupo (de facção) devesse prevalecer mesmo sobre as evidências. Justamente o avanço das políticas de proteção é que permite que haja casos isolados de abuso. Os conservadores aproveitam para dizer que "é o fim do Me Too" ou que "só a palavra da mulher, agora, já é prova". Não podemos viver entre dois fanatismos: a mitologia perversa da extrema-direita ou a agressividade política de algumas pessoas muito certas de estarem defendendo as minorias. 

Tudo aponta para que alguém tentou aproveitar-se de um movimento legítimo para destruir a carreira de um ex-marido e ganhar dinheiro com isso. A impressão geral do momento (doxa coletiva) criou uma atmosfera para que pequenas evidências descontextualizadas gerassem uma decisão errada. É simplesmente impressionante que, de fato, um juiz veterano tenha acreditado nisso e companhias como Disney e WarnerMedia também. 

Todo mundo sabia que Deep tinha problemas com droga e álcool. Era a parcela de verdade que toda narrativa mentirosa precisa - agora será usada como trampolim para narrativas conspiratórias de como "os homens são vítimas das mulheres". 

Assistindo como Heard se dirigia aos jurados, ao invés da pessoa que lhe perguntava, ficava claro que havia algo muito errado. Era muito angustiante ver que uma pessoa havia sido muito provavelmente difamada e perdido trabalhos em função de uma performance. O fato de que ela não convenceu nem o juri, nem os milhões de telespectadores não é irrelevante. 

A questão é que, em relações tóxicas como essa, é muito difícil estabelecer os limites, o que pode ou não ser enquadrado em cada conceito. É preciso muita tenacidade e análise cirúrgica para desmentir cada pequena mentira que cria um cenário irreal. Além disso, nenhum tribunal pode ter tempo ilimitado, e nunca as evidências coletadas podem ser "tudo que existe ou existiu" em torno do caso. 

Os advogados do acusado sempre tentarão mostrar a suposta vítima como o real agressor, mas ainda assim o juiz inglês parece ter se equivocado aceitando apenas provas diretas que respondessem à pergunta "se Depp tinha cometido a violência ou não". (2 junho 2022 - BBC) Neste julgamento, os fatos externos (para além da fala da suposa vítima) que circundam o "evento" não apareceram (por exemplo, nunca apareceu uma suposta mulher de quem Deep teria tido ciúme e pelo que teria iniciado uma briga). 
 
Não sei em que ajuda pensarmos de modo tão superficial como para dizer que: "Muitas vítimas de violência doméstica que assistiram a este julgamento provavelmente concluirão que, se compartilharem suas experiências, serão desacreditadas, envergonhadas e condenadas ao ostracismo." (2 junho 2022 -The New Yorker). Havia um triunfalismo de facção em algumas declarações de que você estava sendo "manipulado" contra a acusada. Teve quem dissesse que haviam descartado "fotos de ferimentos" e seria difamatório dizer que ela "mentiu sobre o abuso". 

Antes de mais nada, o sistema seria tão ingênuo à ponto de descartar uma prova que mostra que a vítima foi violentada sexualmente? Além disso, podemos partir da ideia de que o crime é certo, a prova em contrário deve ser o objetivo? Alguém é estuprado com uma garrafa e não busca um médico? Pode ser, mas aceitar a palavra sem evidência como prova pode ser ainda mais catastrófico ao sistema democrático. Os jurados podem ter acessado à internet, mas isso os levaria a condenar uma pessoa inocente? 

Tara Roberts, administradora da ilha privada de Deep, narrou como ele foi atacado e afirmou: "Amber lhe dizia que ele era um ator fracassado... que ele iria morrer como um velho sozinho". (28 de mai - 2022 - G1) Sean Bett, o guarda costas, mostrou fotos da violência doméstica contra o ator, que havia documentado justamente por prever acusações da atriz, etc, etc. 

Em nada favorece o movimento em defesa das verdadeiras vítimas a onda de "culpado até provar inocência". Porque o que a extrema-direita faz é, na verdade, rebaixar o pensamento, destruir a sutileza, de modo que se pode inclusive generalizar a ponto de defender isso ou aquilo à custa da verdade particular. As teorias de conspiração apagam os dados concretos. O que me parece melhor - no caso de comentários que não estejam acompanhando minuciosamente o julgamento - é simplesmente dizer: não sei; não posso dar opinião definitiva baseado apenas na minha impressão, porque ela representa minha pré-concepção. 

O que isso afeta as mulheres vítimas de violência em geral? Bastante, se seguirmos a ideia medíocre de que existem mocinhos e bandidos, ou de que o sistema de Justiça não se baseia em evidências, mas em opiniões. O fato de que algumas mulheres mentem não deveria impedir que se condene quem pratica violência. Cada caso segue sendo único, e a história de opressão e violência contra as mulheres segue sendo um eixo formador da nossa sociedade. De qualquer modo, poder revisar nossas certezas e convicções ainda é o melhor caminho. 

Amanhã podem surgir novas evidências, ou podemos descobrir que o julgamento foi uma farsa (como ocorreu recentemente no Brasil). Mas, por hora, é bom refletirmos que não podemos transformar esse caso no caso "se os homens/ as mulheres" isso e aquilo. Cada denúncia deve ser tomada a sério e investigada com cuidado. Os progressistas precisam estar atentos ao uso dos direitos humanos para promoção pessoal e calúnia, de modo a evitar que a extrema-direita se aproprie disso. A democracia depende de que não seja apenas minha opinião fanática, a qual defendo até a morte. Isso foi o mundo das guerras de religião. É preciso voltar à melhor democracia que podemos criar. 

*

Afonso Jr

https://ponte.org/artigo-no-julgamento-de-heard-e-depp-quem-perdeu-foram-todas-as-vitimas-de-violencia-domestica/

https://www.newyorker.com/culture/cultural-comment/the-depp-heard-verdict-is-chilling

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61677816

https://www.theguardian.com/world/2021/feb/10/france-begins-to-confront-decades-of-neglect-of-incest-cases

https://www.youtube.com/watch?v=cRQWGbk1pqM

https://www.youtube.com/watch?v=fAqSdHBtxBE 

https://www.youtube.com/watch?v=Y83aKLBtEA0 

Nenhum comentário: