Porto
Alegre – cena teatral
Um
homem soterrado por uma montanha de livros, somente com a cabeça de
fora. O cenário representa uma cidade alemã em miniatura, com trens
e montanhas. Muitos objetos fálicos em madeira e pedra ficam no
chão, onde tem terra e estão os atuantes.
Um
mapa de São Petersburgo é projetado.
OFF:
Algumas cidades têm uma ligação muito forte com a água.
Neva.
Homem:
Eu nasci dia 27, num hospital chamado Femina. Homem. Não estava na
cidade sua avó. Meu pai acabara de chegar de viagem, a gravidez de
minha mãe foi um pouco solitária. Sua mãe tinha um bom emprego,
vinha do interior, e perdera o pai há pouco.
OFF:
Um parque famoso. Um passeio de barco. Uma Catedral. O museu
orgulhoso. Jacarandás floridos. Galpões e cavalos. Filosofia. Arte
contemporânea. Nudez e crueldade. Palas Athena verde na praça.
Blues. O Mercado. Dois poetas no bronze.
Um
homem amarrado em camisa de força grita enquanto se diz o texto.
Atuante
1 – Mario traduziu Proust. Lya traduziu Virgínia. Marcelo traduziu
Marx e Kafka. Donaldo traduziu Homero, Heráclito, Joyce e Sófocles.
Jesus traduziu Deus.
OFF:
Um gaúcho com os pés na terra. Vento. Raízes profundas. O sol no
domingo nas árvores do parque. Calor infernal. Pássaros com frio e
vamos ao cinema. As casas antigas, o calçamento de pedra.
Parente:
Você tem de ganhar dinheiro.
Atuante
2 - Os italianos ficaram perdidos na selva.
Professora:
Falta leitura. Você não tem concentração.
Atuante
3 – Os alemães fizeram a Disneylândia da Bavária. Founde
e cinema.
Ator:
Você é filósofo, muito cabeção. “Foi a razão que me perdeu”.
Atuante
4 – Existem, sim, nordestinos, eles trouxeram o charque. Ninguém
se lembra.
Professor:
Meu amigo, você com quinze anos... Antes dos trinta, ninguém
escreve literatura...
Parente:
Você tem de ganhar dinheiro. Um elefante preso pela pata.
Atuante
1 – No mercado Municipal se encontra todos os artigos para rituais
africanos, tem aqueles colares dos orixás que os turistas adoram.
Homem:
É a única cidade brasileira onde todos são europeus.
OFF:
HOMENS FAMOSOS – fotos de estátuas de cemitério em um mosaico
mutante.
Homem
– Eu coloquei a primeira flor no caixão do grande poeta.
Atuante
2 – A maior romancista leu seus textos e disse que “gostou
imensamente”. Nunca mais falou com ele.
Homem
– Andei uma quadra e meia com o Cyro, um telefonema na
convalescença, ele faleceu em 1995, uma semana depois.
Atuante
3 – 17 emais e duas orelhas de livro com o imortal. Lágrimas.
Atuante:
Em “Le tout Paris”, de Charles Castellani, se pode ver
antes de tudo a Ópera, símbolo da cidade moderna; o boulevard
des Capucines, o Café de la Paix, a avenue de l´Opéra, o
Louvre, o Grand Hôtel;
as carruagens, as cartolas, as barbas, as
bengalas, os vestidos, as belas lâmpadas públicas; os poetas, os
pintores, os escritores, os cavalos, os atores, os músicos e as
celebridades que o público adora; emfim, tudo se pode ver, pesquisar
e saber, como convém à nossa era científica.
Homem:
Consumidores de notícias. Consumidores de cultura. Consumidores de
inteligência. Consumidores de gaúchos. Nenhuma
paciência para gênios.
Música
ao vivo: jazz. A música não permite a compreensão plena, o texto é
projetado com “delay”.
OFF:
Aquela foto terrível de um soldado negro degolando prisoneiros.
Dançarino:
Eu sou um personagem. Eu sou o bailarino negro que trabalha de barman
na boate chamada “Doce Vício”.
Judeu:
Sou um marceneiro, judeu polonês, cheguei no Bom Fim em 1934.
Oficial:
Eu sou o militar de “perfil grego” que ofendo as pessoas
chamando-as de comunistas!
Roqueiro:
Dezoito, faço educação física, gosto de mangás e tenho uma banda
de rock que canta em francês.
A
música para.
Homem:
Acabo de encontrar uma lata de leite condensado no armário. Foda-se
o trânsito, os terroristas e o vazamento no banheiro. Orgulho.
A
música volta.
Militante:
Marxista. Vim para o Fórum Social, casei com uma gaúcha, trabalho
na periferia numa ONG.
Estudante:
Minha avó foi uma índia laçada, presa no laço, eu estudo ikeana
no centro cultural japonês. Coleciono fotos de Hiroshima.
Filósofo:
A relação entre Levinas e a Lebenswelt
de
Husserl e a Lebensform
de
Wittgenstein. Também coleciono objetos eróticos da antiguidade.
Psicanalista:
Eu sou a psicanalista da serra gaúcha, que casou com um hindu e
converteu-se ao islamismo.
Poeta:
Poeta. Fico no banco da velha praça sem querer ser incomodado.
Homem:
Totalmente civilizados. Totalmente educados. Totalmente objetivos.
Totalmente elegantes. Totalmente belos. Totalmente trabalhando.
Totalmente criativos. Totalmente globalizados. Totalmente um sucesso.
OFF:
MORTES – projeção, idem.
Homem
– 2000 - A mulher que me criou.
Atuante
2 – 2001 – Grande amor perdido 1.
Atuante
3 – 2003 – Grande emprego perdido.
Atuante
4 – 2004 – Grande amor perdido 2.
Homem:
2005 – Minha avó, morta.
2006
– Vazio encontrado.
OFF:
2007 - Cidade perdida.
Música.
Homem sai debaixo dos livros. São projetadas fotos do mar.
Homem:
A estrela mais brilhante se chama Antares. Ela guiou os navegantes.
Não é a mais brilhante de todas. Mas, com ela, se poderia fazer
dez sóis. Dizem que Antares é habitada por três tipos de seres:
guerreiros, homens vermelhos com espadas em fogo; sábios gregos, que
filosofam entre as colunas; e os rebeldes, que tem sangue e são
invisíveis.
Projeções
de um eclipse.
Afonso Lima
O trabalho Porto Alegre de Afonso Jr. Ferreira de Lima foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Podem estar disponíveis autorizações adicionais ao âmbito desta licença em http://afonsojunior.blogspot.com/.
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