A sedutora
Amigo, temo que sua
esposa, a boa Ida, esteja ocupando demais seu tempo e contar-lhe-hei
meus avanços, saudoso de nossa antiga correspondência. Quantas
vezes ouvimos melodramáticos casos de adultério, de segredos
familiares e de desejos reprimidos? Vingança, revolta contra os
pais, fantasmas que retornam, toda a onda dos teatros da fatalidade
com cenários de papel crepom! Um homem contou-me que seu padrasto
abusava dele no banho, ejaculava em sua boca, e que, quando contou à
sua mãe, levou uma surra por ser “mentiroso”.
Sempre pensei que, no
caso da mulher, a natureza é destino, pois lhe dá a bondade, o
encanto e a beleza, as qualidades delicadas e a necessidade de
proteção. A luta pela vida não combina com esse anjo doce e
delicado, e, quando as misérias se abatem sobre ele, ainda mais na
idade em que as flores desabrocham, sua alma de camélia adoece e
murcha. Assim, recebi essa garota de dezoito anos em meu consultório, com, entre outros sintomas, tendências suicidas e convulções.
O senhor Philipp, pouco
antes do fim do século, levou sua esposa e seus dois filhos para
Merano, e nem mesmo o ar límpido e o verde brilhante da velha
cidade italiana aplacaram a paixão infernal do seu sangue. Ele
envolveu-se com a esposa de seu amigo Hans, uma tal Peppina. Ao saber
do ocorrido, o marido traído foi de encontro à filha de Phillipp,
Ida, de quatorze anos. A vingança é sedutora quando encarnada em um
fruto fresco.
A menina inocente teve um
beijo roubado, por pouco não foi violada e fugiu. O pai, ao saber da
história, interpelou o marido de sua amante – que negou o fato,
claro - e acusou sua filha de mentir. Peppina percebeu que era
preciso dar mais consistência à ideia de que a menina mentira por
estar na fase em que as paixões começam. Hospedou a garota em sua
casa e dormiu no mesmo quarto que ela. Deu-lhe livros eróticos e lhe
falou sobre sexo. Depois, reforçou a acusação que lhe haviam
feito. Ida começou a ter enxaquecas, tosse compulsiva e afonia. Seus
sintomas fizeram com que seu pai a trouxesse a mim, que o tratara de
sífilis.
Ela contou um sonho: “A
casa pegava fogo, meu pai me acorda, minha mãe quer parar e levar
sua caixa de jóias, meu pai diz que não vai nos deixar morrer por
causa de jóias e descemos correndo as escadas”.
Agora, meu amigo,
mostro-lhe como estou descobrindo as leis ocultas da mente. Considero histérico aquele a quem a excitação sexual causa repulsa. Serei eu
um dia, como o criado Damiens, que ousou ferir o Rei Luis XV, grande
sedutor, para trazê-lo à razão, o qual mergulhou na melancolia e
extinguiu-se, acusado por romper para sempre a invisível prisão?
Dr. Charcot havia
mostrado a importância dos traumas: sustos, ofensas, frustrações.
A mente, como um manuscrito repleto de emendas, palavras anuladas e
trechos ilegíveis, estende-se como uma catedral que vai além das
três dimensões e toca o tempo. A busca de esquecimento, a inibição
de uma intenção ou ideia, fazem com que entrem em segundo estado de
consciência: sua lembrança retorna em ataques, muito comuns em
pessoas de elevadas aspirações estéticas, religiosas (as “monjas
convulsivas”) ou adolescentes de “boa educação”. Um desejo
violento, em conflito com as aspirações morais.
Eu lhe falei de sua
prática masturbatória infantil. Ela sentia um desejo incestuoso
pelo pai e desejara sem saber seu sedutor. Nós sabemos que alguns
corpos encontrados em Pompéia mostram pessoas gritando ou erguendo
as cabeças em gestos de dor. Nem sempre a arqueologia revela o que
nos agrada. Deveria ter demonstrado alguma espécie de afeto, tão
distante do que cabe à um médico? A jovem em flor havia ido embora.
O trabalho A sedutora de Afonso Jr. Ferreira de Lima foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Podem estar disponíveis autorizações adicionais ao âmbito desta licença em http://afonsojunior.blogspot.com.br/.
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