O antiSherlock
Momai estava de férias no sul, em uma prainha remota, mas recentemente incrementada com lojinhas, supermercado, caixas de banco, um hotel, cheia de casas com flores e gramados. Um livro sobre impérios antigos, vinho. Era seu refúgio contra aquilo que as pessoas continuavam chamando de cidade, São Paulo. Sua filha havia fugido com o namorado, encontrada vendendo artesanato em Floripa. Quando estava já perdendo seu eu no meio do caos metropolitano... Havia chegado presunto novo, um extra como consultor do "serviço secreto", a polícia de inteligência. Nessa cidadezinha, o crime mais terrível era o desaparecimento de um cão da vizinhança. Tyr, o deus da guerra, dormia tranquilo na sua carteira.
- Sinta-se honrado: parece que os crimes gostam de você – Hélio dizia no celular. Estava vindo, o caso de um rico empresário na serra gaúcha fizera com que a polícia solicitasse consultoria especial.
O homem morrera de causa desconhecida (não foi coração, nem objeto cortante, etc.) em um ambiente “hermeticamente fechado”. Nenhum sinal de arrombamento na casa. Fora encontrado nos seus aposentos pela sobrinha – no meio da noite, ela ouvira, do seu quarto, que era conjugado, um grito desesperado. A porta do tio estava aberta e ele agonizava junto a ela. Apenas pode dizer: “Callipolis”. Neste momento, chegou o cunhado, um alcoólatra desprezado por ele, que passava as noites fora.
Na velha mansão os recebeu a governanta, Dona Schultz, uma senhora altiva, com olhos azuis frios e um colar de pérolas um pouco extravagante para sua função.
– Ele era um tanto paranoico. Temos um alto muro que cerca toda a propriedade, com câmeras e cerca elétrica. Há mais ou menos 15 anos, bandidos entraram nesta casa e, desde então, mandou colocar barras de ferro na janela e nunca mais dormiu sem trancar as portas. Se tocar nessas paredes, como fazem os detetives de filmes, vai ver que são sólidas como as de um castelo.
–
Havia um sabre na parede e uma vela sobre a mesa. E se faltasse luz?
– Ele tirou as coisas do lugar? Parece arrumado.
– Sim, ele quebrou um abajur que ficava ao lado da cama, com certeza tentando se levantar, derrubou esta cadeira e abriu a porta deixando cair a chave de ferro.
–
Momai olhou rapidamente para a cadeia, a chave e as barras da janela.
– Com isso ele chamava a senhora? - apontou uma corda que, passando pelo duto de ventilação, descia até acima do travesseiro.
– Aconteceu apenas duas vezes nesses anos todos. Ele temia um colapso no meio da noite. Ela vai dar no meu quarto, passa por uma saleta ao lado. Se foi atacado, por que não me chamou?
Depois falou com o jardineiro, um homem soturno, meio delirante, que tinha certeza de que vira personagens no jardim que há tempo espionavam o patrão.
No enterro, Momai observou a sobrinha chorosa, com seu cabelo lilás e piercings, o cunhado ainda vermelho, que parecia nervoso, e a governanta.
– Eles tiveram um caso? - perguntou à jovem.
– Sim, mas não guardavam ressentimento. Quando jovens, viajaram juntos para a África, onde ela trabalhou como enfermeira voluntária. Ele a contratou. Ela o serviu mesmo depois que começou sua relação de uma década com Giulio, um marchant italiano do qual se separou há um ano. Andava depressivo.
– Você vai herdar tudo?
– Sim. Não é maravilhoso? Meu pai virou um trapo depois que mamãe morreu. Meu tio me explorou anos, um cárcere privado emocional, e agora me deixa livre. Apenas o sítio ficou em nome de Giulio.
– Ainda: a senhorita foi a primeira pessoa à entrar no quarto. Teria alguma coisa especial a descrever?
– Não. Nada. Ah, sim, talvez. Depois da perícia da polícia, o quarto havia sido liberado para a limpeza. Achei aquilo muito estranho. Inclusive, tive a impressão de ver Dona Schultz limpar até mesmo a cadeira, as grades e a corda da campainha. Bizarro.
Hélio perguntou, enquanto Momai tomava seu café com cuca (nunca encontrava isso em São Paulo):
– Callipolis é a cidade ideal de Platão?
– Exatamente. Eu lhe disse, quando previ que o deputado Coriolano estava organizando um grupo de extermínio, que a coisa era maior.
– A polícia acabou investigando o caso. Foi bom. Pelo menos ele foi afastado pela comissão de ética. Mas agora... Quem sabe o companheiro pode nos dar mais alguns fatos?
– Hélio, você sabe... Não se pode criar ciência amontoando fatos. Eu crio a mais bizarra teoria de que sou capaz e, se for a mais provável e nada a desmentir, tomo-a por verdade. Sou o antiSherlock.
Giulio contou, por webcam, que tinha certeza do assassinato.
– Ele tinha ficado com a maior parte de nossos quadros mais valiosos. Provavelmente íamos iniciar uma batalha judicial. Não vou ser rude, era violento e irascível, mas um bom homem. Estaríamos juntos se... Bem, só posso dizer que havia segredos, telefones secretos, cartas com lacre, havia um encontro anual inevitável em alguma parte da Sicília e que nunca pude saber o que era... Não posso viver com mentiras! Foram dez anos de felicidade, mas... Eu simplesmente sinto que não sou importante.
A perícia analisou a corda. Dona Schultz teve prisão preventiva decretada. Cartas ambíguas, mas importantes, foram encontradas em uma parede falsa do quarto.
– O último caso me fez pensar numa organização internacional, agindo por convicções filosóficas. Para Platão, o governo devia estar na mão de reis-filósofos. Não é improvável que ele tivesse decidido abandonar a causa. Quanto ao assassinato, a única forma de algo entrar no quarto seria por esse duto de ventilação, pela corda. Logo pensei em algo que escorreu por ela, mas desapareceu em seguida. Como numa obra antiga. Um veneno vegetal mortal, desconhecido, que tivesse de alguma forma evaporado. Mesmo assim, ela teve o cuidado de limpar a corda...
– O assassino está ligado ao último “psicopata profeta”? Mas como...
– Ele enlouqueceu e expôs a corporação. Podiam fazê-lo outra hora? Existem casos em que o estado presente determina completamente o futuro sem parecer fazê-lo, aparentando ser aleatório. Berkeley dizia: “ser é ser percebido”. Agora, eles sabem que eu sei.
O trabalho O antiSherlock de Afonso Jr. Lima foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
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