"Quanto mais
correta for uma pessoa, maior o número de coisas que não revelará
sequer para si mesma. Eu, porém, decidi lembrar-me, falar sobre
elas, ousar trazê-las á luz"- diz ele sobre a alma do grande
escritor. Foi no processo de pesquisa para meu artigo sobre "O
sósia" de D., que acabei deparando-me com uma história bizarra
sobre ele - e o ensaísta. Algo constrangedor, imoral, mas que lhe
colocava em sintonia com esse desejo de ir contra o mundo burguês e
analisar as "profundesas criminosas da consciência". Ele
fala do grande homem que tem uma culpa trágica e identificação com
o crime, fantasias mórbidas, que tem uma doença que se assemelha ao
êxtase sexual e sua posterior depressão.
Passei a buscar então a
base dessa personagem, "figura viva" como queria Schiller,
misto de conceito e sensibilidade e as camadas sobrepostas daquele
que representa e do que inspira. "Que precisão de pensamento,
expresso nesse belo corpo" - ele fala sobre o rapaz. Dizem que
A., neto de um nobre industrial polonês, de férias com a mãe e os
irmãos no hotel à beira do Lido, chamava a atenção de outros
cavalheiros, inclusive de um outro escritor que chegou a colocá-lo
no colo. "Ele era mais bonito do que as palavras podiam
exprimir" – diz o livro. O outro, tinha três anos à mais,
ainda assim grupos católicos protestaram contra o filme inspirado no
texto. Um deles foi preso pelos nazistas, perdeu sua herança na
Polônia comunista, e viveu pobremente durante anos. O outro diz que
era sempre visto como homossexual, desde a época que o diretor e a
equipe o levavam a bares gays e se sentia constrangido, começou a
negar isso ostensivamente, inclusive dizendo que o filme foi “uma
maldição” para ele, e passou a ser descrito como preconceituoso.
"Será que serei apenas esse rapaz?" – ele dizia. O
primeiro era um aristocrata jovem quando recebeu da prima, que o
reconheceu, o livro, ao qual não deu muita bola. "Perfeitamente
belo, com uma seriedade divina, como as esculturas dos mais nobres
tempos" – diz o livro. O jovem ficou muito tempo sem atuar,
dizia que os diretores não tinham lugar para quem foi a
representação da perfeição, chegou a declarar: "Não pedi
para nascer com esse rosto. Não vejo a hora de envelhecer". Um
morreu em 1989, tendo sido obrigado a permanecer na Polônia pelo
regime comunista, pois sua fuga poria em risco a vida de familiares
próximos. O outro, acabou casando, teve filhos e, na meia idade,
passa a ter conflitos de consciência. Um deles, tendo perdido tudo,
teve de ganhar a vida como tradutor na embaixada inglesa. O conde
ficou profundamente ofendido quando o diretor do filme não quis
visitá-lo em uma visita ao seu país. Deu entrevistas para o
tradutor polonês do livro confirmando que era ele que brincava na
areia com um amigo, e que isso pouco indicava sua vida como
voluntário de guerra e depois prisioneiro quando os nazistas
invadiram a Polônia. O outro acaba morrendo em pleno estúdio
quando, no intervalo de uma filmagem, põem uma arma na cabeça e faz
uma brincadeira - a pressão é suficiente para deslocar um osso do
crânio. O primeiro lembrava-se da imagem de um homem “velho”
(tinha 35 anos) observando ele e seu amigo, dois garotos jogando bola
na praia. Ele lembra de entrar no elevador e quase ser devorado por
um olhar apaixonado. Na embaixada, o homem descobre uma entrevista
com a esposa do escritor, na qual conta que, quando esteve com seu
marido nessa praia, ele ficou transtornado com a beleza de uma
criança.
O livro diz
que ele tinha algo de “rico e mimado”, com seus cachos e terno de
marinheiro inglês; o sósia (tão perfeita verdade) foi dublado por não ser polonês e
dizem que o primeiro ator convidado a contracenar com ele apenas
exclamou: “Não posso me apaixonar por alguém que existe”; a
esposa do escritor diz que ele hesitou em fazer do personagem um
escritor, mas acabou preferindo “dizer toda a verdade” - e, no entanto, era outro. Não existiria Tadzio se não houvesse ideia.
Mas como
dizia, acabei deparando-me com uma história bizarra sobre o grande
escritor comentado. Na casa de uma família amiga, cercado de moças
e crianças, ele conta sua intenção de escrever um romance sobre um
senhor feudal que, entre amigos bêbados de uma noite de excessos,
conta sobre o estupro de uma menina vinte anos antes. A dona da casa
fica chocada e manda-lhe embora. Eu mesmo recordei que, quando
adolescente, ouvi relatos cruéis, narrados de modo frio por outros
bêbados. Um amigo conta da trágica ocorrência com sua filha dentro de sua casa num condomínio fechado. De fato, essa análise vem à tona na obra de um escritor
que, também ele, se apaixonou, ainda que de forma idealizada, numa
cidade úmida, sombria e pestilenta. E é ele quem fala do grande
homem que tem uma culpa trágica e identificação com o crime,
fantasias mórbidas.
Afonso Lima
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