Senhoras e senhores:
Com grande prazer, venho hoje receber o prêmio que foi profetizado pelo meu professor.
Esse professor dizia: “cuidado para não virar um clássico”. E, ao mesmo tempo, profetizava que, com uma bela redação, eu iria “longe”. E longe, quem sabe, era dentro. O mundo, tão disperso, gosta de evitar sínteses, novas leituras. Ele havia sido palhaço na corte, perdera a razão, ele foi ao inferno atrás de sua alma. E quando os senhores me propõem esse tema, o que é o clássico, eu lembro dele.
No seu curso, “Como escrever um clássico”, aprendemos muitas coisas, em especial a deixar de lado tudo que não é vivo para nós. É disso que os clássicos são feitos. Um clássico é aquele lugar onde podemos mergulhar e encontrar o que precisamos; como um mito, é a imagem-síntese que faz a mente trabalhar, narrar.
Os clássicos, todo mundo ouviu, nunca acabam, sempre têm sede de dizer. Os clássicos despertam nossa curiosidade (como o amor), porque não os sabemos, cães estranhos, porque são livres das convenções, dos medos de não agradar, são si mesmos profundamente. Como Sócrates, dizem: “Tantas coisas de que não preciso”.
Os clássicos surpreendem sim, mas porque interessam. Interessam, fazem prosseguir. Portanto nunca dizem mais que o necessário, ou dizem de uma forma tão desnecessária que causam prazer. Um clássico é seco como um detetive. E as coisas explodem quando aparecem sem moldura.
Os clássicos interessam à muitos porque todo mundo têm um pé no seu tema – portanto ele gera leitura; e é metafórico, abstrato e estranho o bastante para dar espaço à criação individual, várias épocas podem debater com ele seus problemas. Um dia, todos achavam que o romance era grande e a ciência perfeita, e cada clássico tinha um jeito de operar a mesma regra; depois, os clássicos passaram s ser sistemas, pesquisas pessoais e visões libertas; não importa, ele sempre nos leva como nos livros do maior escritor policial de todos os tempos, Freud.
Nós, criadores de clássicos, operamos a linguagem, a maior alma coletiva do mundo e fazemos pensar com a emoção. Fazemos rituais de compartilhamento, e permitimos que se troque de alma, libertando as pessoas das normas ao redor e dando-lhes novas regras para jogar.
Uma história propõe ideias que amarram, são fios condutores; podemos até pensar sobre ideias do mundo. Porque coisas complexas nos fazem questionar o hábito, o mundo se torna possível de estranho, gera enigma, monstro, crime. No mundo onde faltam ideias reguladoras (o marxismo condenado, e Nietzsche como democrata maior falhando), ideias e métodos evitam impulso, medo, repetição. Aqueles conteúdos isolados, coisas-em-si-mesmas, saem do sujeito para atacar os outros e voltam como ataques em fogo sem mediação.
O clássico nos dá medo. De descobrir todas as formas da imaginação de Dante. De tudo que Proust viu e pensou. Existe a resistência ao mergulho no mar absoluto. Os clássicos sempre propõe modelos (mas cheios de imagens emocionais), porque, como os mitos, exemplificam muito uma situação, de modo que podemos unir os particulares em categorias, já que todo pensar deve ter algo de generalização.
Como escrever um clássico? Não pensando demais como os críticos, a tradição, mas ligando-se àquela alma vegetal de todo ser, úmida, germinativa; à sua memória, à força impulsiva que raciocina emocionalmente. Mas o passado gera impulso. Os críticos despertam paixão. O crítico junta sua narrativa-guia com uma das em potencia no texto e elas se alimentam, atraindo amantes.
Em um mundo onde não se trata de debater temas, mas de quem está falando, onde temos de “ser alguém” para sermos vistos, e, portanto, não gostamos de processos longos, o clássico entra em contato, abraça, dialoga. Diverte e não diverge, escolhe, concentra, possibilita a unificação do eu.
O pobre consciente com luvas de boxe tenta lutar contra a lei inflexível do superego (de smoking, mas agora talvez burguês-consumista) e com Isso (com roupa de tigre e um tridente). E, é claro, um clássico calouro promete status intelectual a quem seduz e dá diversão para ser um veterano.
Um clássico é como um estrangeiro que chega em uma cidade, trazendo novos modos de fazer, novos modos de organizar, estando fora das classes. Como um sábio árabe, busca regras ocultas dentro das coisas, traduz estudos antigos e acredita que simplificações ideais geram aproximações úteis. Um clássico é rebelde.
Um clássico é uma escolha cirúrgica. Tudo que diz é a matéria, não a doutrina. Ele nunca permanece.
Um clássico mostra que o central é o significado, por isso tudo que foi feito precisa estar dentro de um livro.
No nosso mundo onde os donos do poder sabem o que devem fazer, já criaram todos os modos, os objetivos e as formas de falar, todos os esquemas de organização e categorização do real, tudo deve ficar imóvel, como as propriedades e as leis, o clássico traz a lógica do jogo, onde todos podem participar, o absurdo das rígidas tabelas, a filosofia por trás do método mais empírico.
Um clássico deixou de lado toda multiplicação e pretensão. Ele não quer mudar o mundo, mas muda. Um clássico é uma sensação nova. Não cabe nas gavetas. Mesmo tendo sido contado, não perde seu interesse, diz que tudo é diferente. Os clássicos são os descendentes dos sacerdotes que decapitavam drasticamente os animais em ritual.
Na verdade existia um animal que era de manhã algo, depois o oposto e de tarde outra coisa. Édipo foi condenado por dar uma explicação simples. Ao mesmo tempo, ele foi rei porque conseguiu ler um símbolo, o homem relaciona. Os valores mais sagrados e os mistérios mais profundos viraram piada para o clássico.
Como dizer a verdade sem ser hipócrita?
Como escrever um clássico? Começa com: sem todo o resto.
Afonso Lima
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