O acontecimento da entrada de posse de uma fortuna tão incomparável por um proprietário tão jovem poucas conjeturas trouxera à tona referente ao curso provável de sua conduta. No espaço de três dias, a conduta do herdeiro sobrepujara a do próprio Herodes. Ultrapassou, de longe, as expectativas de seus admiradores mais entusiastas.
Orgias vergonhosas, flagrantes perfídias, atrocidades inauditas deram logo a compreender a seus apavorados vassalos que nenhum escrúpulo de consciência da parte dele lhe poderia de ora em diante garantir a segurança. Eram implacáveis as garras daquele mesquinho Calígula. Palavras de fogo, suntuosos ambientes, a arte como beleza obscena tudo fervia na sua mente escura e tempestuosa. Na noite do quarto dia, pegaram fogo as estribarias do castelo de Berlifitzing. A opinião unânime da vizinhança acrescentou mais este crime à já horrenda lista dos delitos e atrocidades do barão.
As pessoas caridosas, no entanto, haviam atribuído a alteração de procedimento do jovem fidalgo à tristeza natural de um filho que abandona para sempre seus pais. Alguns havia, de fato, que a atribuíam a uma ideia demasiado exagerada de sua própria importância e dignidade. Outros ainda (entre os quais pode ser mencionado o médico da família) não hesitavam em falar numa melancolia mórbida e num mal hereditário. Tenebrosas insinuações de natureza mais equivocas corriam entre o povo.
Na verdade, o apego depravado do barão à sua montaria recentemente adquirida – apego que seguia o aumentar das inclinações ferozes e demoníacas do animal – tornara-se, por fim, aos olhos de todos os homens de bom-senso, um fervor nojento e contra a natureza. No esplendor do meio-dia, a horas mortas da noite, doente ou com saúde, na calma ou na tempestade, o jovem Metzengerstein havia se fundido com o cavalo colossal, cujas ousadias intratáveis tão bem se adequavam ao próprio espírito do dono.
Havia, além disso, circunstâncias que, ligadas aos recentes acontecimentos, davam um caráter sobrenatural e monstruoso à mania do cavaleiro e às capacidades do corcel. O espaço que ele transpunha em um simples salto fora cuidadosamente medido. Verificou-se que excedia, por uma diferença espantosa, as mais ousadas expectativas das mais imaginosas criaturas.
Num instante, o tropel dos cascos ressoou forte e áspero acima do bramido das labaredas e dos assobios do vento, um instante ainda e, transpondo dum só salto o portão e o fosso, o corcel lançou-se pelas escadarias oscilantes do palácio e, como o cavaleiro, desapareceu no turbilhão caótico do fogo".
Afonso Lima
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