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quinta-feira, outubro 30, 2014

O milagre

Anoitece. Ele caminha pela avenida, vidro vertical e concreto. A luz da torre no escuro prédio em frente. Alguém lhe disse: meus alunos são analfabetos. Ouviu: A distribuição de renda se deu pela globalização mundial. Onde está? Ouviu: A democracia tem que ter alternância. Quando era adolescente, andava de skate, um policial bateu na sua mão, propaganda, a empresa não permite plantas e ideias novas sobre a mesa. Barulho, um animal se arrasta no chão. Inovação, design na vitrine. O doente incurável que dissolve a estabilidade. Um carro grande para sobre a faixa de pedestres, uma mulher arrasta uma criança. Dores nem do corpo nem da alma, que tem algo dos doisOnde está? O homem normal nos odeia, nos teme, raça de perdidos. Livraria, na capa, um senhor feudal manda matar os filhos, casa com a cunhada, prende o servo rebelde. Vento frio, a lua sai de trás da nuvem e se deforma no décimo-sexto andar. Na manchete do jornal: governo - crime e conivência. Um jovem diz: "Eu não tenho dinheiro para ler jornal". Uma mulher: "Se tem fumaça, tem fogo, ladrão". Fogo no ônibus, os mercados tremem. Fumaça, pessoas afetadas pela indústria. Passa pela universidade, estudou para ser sozinho. Onde está? No café, o livro: e o fantasma do rapaz preso no castelo aparece para o príncipe. Quando tenta violar a cunhada a imagem da filha aparece sem cabeça. O cavalo no campo à noite se assusta com um corpo de enforcado. O príncipe passa a viver dentro de seu quarto e enlouquece aos poucos. O veneno inato, o inferno, que nos deixem em paz, em paz. Na esquina, um violão, blues, um gringo, a crise. Compra um cigarro, economia de TV sobre a "roubalheira". Na fila: querem plebiscito, quem votará é só militante, logo vão estar enforcando pessoas na rua. Entra, frio, ambiente controlado, laboratório. Na tela, extermínio de espécies exóticas, planos políticos, toneladas de informação, um grupo pequeno de pessoas poderosas. Um homem de bigode lembra seu tio coronel, almoço de domingo: o empresário não pode ser tutelado pelo estado. Alguém falou: de que forma isso poderia ser, era sertão, escravos e senhores, indústria, torturadores e patriotas. No filme: reformar o mundo, histeria coletiva, remodelar o mundo mental de uma geração inteira. O eu louco incurável, a castração do espírito, o controleUm homem de terno parou por algum motivo no meio da calçada. Como? Pela avenida carros com pessoas silenciosas, ouve-se o discurso por toda a cidade. 

Afonso Lima

domingo, outubro 26, 2014

A voz

Eles estavam sentados em suas mesas. Um pouco acinzentados. Os olhos bem abertos. Olhavam a máquina.
- Não somos mais aquele país.
A máquina falava de uma conspiração sinistra.
- Deve haver algum engano. Eu estudei.
- Eu sei. Deve ser difícil. Seu pai, seu avô, seu bisavô.
O líder era suspeito. Algo monumental. A resposta do líder. A resposta à resposta.
- Que se deixava levar; apenas um rostinho bonito. Promessas de mudança.
O ataque aos anunciadores é algo terrível. A revolta não tem causa.
- Onde foi que nós erramos?
- Democracia.
O outro parecia transtornado, levantou, saiu pela porta sem pagar.
Eles comiam. A voz. Os olhos iam perdendo o brilho. Ele sabia o que estava acontecendo. Já tinha visto muitas guerras.
Sabia que o primeiro momento é o medo. A voz neutralizava.
- Aprendemos um pouco.
Ele comeu tranquilamente sua refeição. Sabia o que ia acontecer com eles.

Afonso Lima

quarta-feira, outubro 22, 2014

A felicidade

Uma guerra. Dentro de um condomínio fechado, um carro importado, um restaurante refinado, universidade cara: protegido, esterilizado. Por isso eu vou explodir a bomba. Não havia choque na minha vida, na vista azul das montanhas atrás de vidro grande com mulher fria na minha casa de campo. Na praia onde as crianças loiras falam com crianças com sardas ruivas ou quase loiras. Nos campos de golfe onde circulo, as pessoas estão indignadas com os bolsistas que nunca leram um livro na sala de aula dos filhos. Na balada em frente ao mar onde o rap e o funk fazem chacoalhar as jóias, onde uma mulher enfiou uma faca no peito em protesto contra o aparelhamento e a corrupção, onde meus primos médicos falam do horror de trabalhar no interior, sem shopping, onde meus amigos juízes falam de como é melhor prevenir que remediar, meus tios economistas e seus pupilos falam do horror social, de como um grau de desespero é bom agra e e polícia precisa cuidar dos efeitos do ajuste, todo mundo está puto com o número de carros invasões de propriedades e bolivianos e nós sustentando Cuba e minorias raivosas e empresários vermelhos. E miseráveis nus estendendo a mão em Higienópolis sem que um tiro um PM sem que nenhum veneno nos salve. Tive de demitir três empregadas. Só por que viviam em cortiços ratos caíam na cama em albergues não sabem ler a mãe comia comida estragada e o pai bêbado foi preso por engano não justifica fim da idade mínima cadeia já preso também é negócio. Eu tenho conhecimento jazz curso gourmet de fotografia medo ouvi piano em Madrid e responsabilidade social. Eu tenho mala gucci angústia no cartão e veyron os mais de 400 quilômetros por hora que esse carro pode atingir, medo, madrepérola, medo e uma arma no carro. 

Agora. Uma prima que ajuda a África até tem um filho adotivo e paga carteira assinada pros empregados da fazenda de Minas que seu marido nem dava salário passou pelo constrangimento de voltar de Miami com um porteiro do lado. Uma tia que ajuda o Greenpeace passou pelo vexame de ver a empregada desistir do emprego. O Lamarca e sua guerrilha voltaram. Eu já sei quem é o inimigo, então tudo o mais é irrelevante, é o bem contra o animal, agora é apontar o míssil, quebrar essas bandeiras, pegar sua espada, acabar com o mal antes que a favela invada o centro climatizado. Meu pai hoje é um homem que só mexe os olhos, mas com eles manda sinais que dizem acabem com o terrorismo. Os sindicalistas quilombolas estudantes sem-teto ou liberdade lucro felicidade. A minha mulher ficou um pouco nervosa andando com os cisnes no lago quando um menino ao lado cor de água suja, um pouco nervosa agora que estava ficando com o bumbum definido e carga mais pesada, e jogou, deixou cair nossa princesinha. O que será dela indo num show de rock e encontrando namorando quem sabe engravidando de um desclassificado, povinho bolsa esmola, gentinha filho de analfabeto, na sua mesa de jantar, no quarto da Barbie Minnie Ivy Lavigne com swarovski na parede que você pintou com amor e carinho e colou estrelinhas planetas e nomes de presidentes americanos pra ela ser inteligente? A minha mulher teve um colapso numa loja de cristais de Veneza com um casal diferenciado e teve de quebrar uns espelhos e ligou pra Itália para a mãe acalmá-la. Na Vila cheia de flores onde jogamos bilhar e fazemos convenções, os empresários acham que combater a fome foi bom, mas é pouco e as ações? Pobre adam. É um estado de exceção, a  maldição de um povo miserável, por isso precisamos de um governo de contenção, um pouco de censura, pra evitar um golpe comunista, a pobreza vigiada, porque a pobreza é crime. Trabalhamos com a produção da urgência, a tensão pela felicidade, os sistema de exclusão e condenação moral da revolta, tudo junto é progresso no fim. Eu quero o bem do meu país, sempre houve cavalos e cartolas, boa e má sorte, destino, raça, a vida tem que seguir seu curso livre natural. Nós, que civilizamos essa terra. Por isso eu vou explodir a bomba no comício. 

Afonso Lima

quarta-feira, outubro 15, 2014

O estrangeiro

- Quem é você?
- Basicamente eu sou um estrangeiro do meu país. Minha alma é anglo, eu acho que a massa é feia e não toma banho. E a culpa é da seca e da moral deles. Mas pega mal falar isso - por isso eu apenas deixo eles onde estão.
- Por que é você?
- Eu tenho entre 40 e 60 anos - mas meu filho é tão desinformado como eu - e pude estudar e prosperar porque nunca passei fome. Eu nasci sob a ditadura, então tem muita coisa que eu não sei. Eu sempre ouvi que rebeldia era ruim, fazer baderna era perigoso. Em especial, o comunismo e o socialismo, uma coisa só, gente malvada que quer dividir seu liquidificador ao meio.
- Como você?
- Eu ouço todo dia os mesmos slogans: corrupção, vandalismo, aparelhamento. Basicamente eu sou bem informado, ou seja, eu vejo muito o mesmo ponto-de-vista várias vezes por anos. Cada vez fico mais com meus familiares e amigos, gente da minha classe, porque o Brasil está perigoso, né? Não dá pra se misturar.


- E como quando não você?
- Quando alguém mostra uma contradição no Pensamento Único, eu sei o contraveneno: isso é polêmico. Eu acho que o problema é pontual, não faz parte de um pensamento maior, de um contexto. É por isso que eu transformo supostos casos de corrupção em amostras de uma conspiração comunista.
- Que medo você?
- Eu tenho medo dos estudantes, acho que a polícia deve ser mais forte. Afinal eu nunca vi corpos espalhados pelo meu bairro. Eu nunca vi as mães chorando por mortes suspeitas. Eu sempre acho que a justiça prevalece. Para quem trabalha.
- Com você?
- Isso porque sempre tem uma parte da Justiça, dos artistas, dos jornalistas que perdeu contato com a realidade como eu. Que acha que pode e deve conviver com a desigualdade, essa obra da Natureza, senão de Deus. E como são valores fortes, valores como honestidade e respeito à propriedade, eu posso ser fanático.


- Desde quando você?
- Talvez eu tenha feito Direito numa universidade onde 2/3 do currículo é Direito Comercial. Talvez eu tenha feito Medicina e não sei que a saúde é atribuição do estado. Eu sou uma PCI (Pessoa Culta Ignorando).
- Em que acredita você?
- Eu não sei o que são juros. Eu não sei o que é FMI. Eu acho que quero apoiar a produção, mas apoio a especulação. Para mim existe uma coisa: economia. E quem fala de economia? A TV. A TV é sempre baseada em dados. E com dados a gente não discute.

Afonso Lima

quarta-feira, outubro 08, 2014

O antigo

O rei estéril, doente o cosmos
pelo rádio escuto tristes novas
é como se uma guerra tivesse chegado
partimos em busca do rio
na terra de lua seca e sem primavera
melancólico choro e lembranças
não tenho, não sei ter
cruza um avião o céu e eu sem pressa
outra linhagem, muito pior
de tolos heróis, violência incontida
de ferro sereias, sem voz humana
bancos de corais em ruínas
devolve o mar veneno químico
resumo da alma
este rachar cinzento
em busca da água
arar e plantar sonha o magro velho
alquebrado em sua pedra
onde as palmeiras agonizam
os ossos dos mortos saem da terra
lamentando a estéril coroa
o ouro som surdo do peito
no caminhar pelo sonho de cascalho
a multidão em círculos no túmulo
prece silenciosa no tempo eterno
noiva impossível que dorme sonho de ninfa
na ponte metamorfose do negociante
olhando água suja olhos frios
a aranha tece, um todo falso
a tradição das casas doentias
linhagem sombria contando moedas
cidade controlada a pele dura
o coro de soldados estranho mar de gemidos
locais áridos os quais o Demônio frequenta
morcegos dormem talvez não haja amanhã
não tenho, não sei ter
o sorriso da menina de casaco azul
não, verde! com seu botão pequeno
de rosa cantando baixo
na terra de lua escura e sem primavera


Afonso Lima

terça-feira, outubro 07, 2014

Pequenos direitos

1. Direito à não saber.
2. Direito à andar à esmo.
3. Direito ao olhar leve.
4. Direito à confusão.
5. Direito à preguiça de todo dever.
6. Direito à antiga precariedade.
7. Direito ao descobrir-me vivendo.
8. Direito ao silêncio das pedras.
9. Direito à suspeita.
10. Direito à compaixão.
11. Direito à indignação.
12. Direito ao erro.

Afonso Lima