Mundo Corporation
Afonso
Junior Ferreira de Lima
Porto Alegre, 2005
Era um belo dia de sol. Cheguei ao aeroporto para buscar
Catherine um pouco atrasada. Há dez anos não nos víamos.
Tentava acordar do imenso estar da luz para viver de novo
sob demandas, queria manter esse eu orgânico que é tão difícil de conquistar,
um eu capaz de atender a tudo, de estar onde está, vivo e livre, como uma
raiz-bicho que sabe ser terra. Esse eu do tempo, que conquistei com muito
esforço, para errar, e ter laços, que é, afinal, o que mantém esse vasto navio,
um contato direto feito de preservação do minuto-presente.
Eu pedi, precipitadamente, a um rapaz que estava no balcão
do aluguel de carros uma folha para escrever, como brincadeira, o motivo que
havia nos unido, há tanto tempo: rêve,
sonho. Eu fora para a França fazer minha pós-graduação em História da Arte e
havíamos sido colegas.
O rapaz, muito bem vestido, alto, loiro, disse:
- Desculpe senhora, não temos folhas.
- Bem sei que talvez não devesse pedi-lo, mas é uma amiga
querida e estou vendo na sua impressora um monte delas. Se não pode me dar pode
dizer...
- Não senhora, a senhora não entendeu. Não temos folhas.
Fiquei perplexa. Eu mesma estava retornando ao sul depois
de algum tempo fora, em Recife, e não estava acostumada ao ar glacial da minha
terra.
“Você deve de ser correta”, lembrei-me de meu pai falando.
Correta. Pensei, em um relance, que meu avô ainda havia apanhado de seu pai no
tronco da sua fazenda, onde haviam sido punidos os escravos, numa tentativa de
lhe dar educação. Minha mãe, por outro lado, de origem polonesa, carregara
aquela dureza, a força da criação marcada pela ideia de pecado. Eu estava
tentando escrever sobre sua vida, no pampa imenso, em Baj, “terra dos morros”.
Como um raio, pensei em como esse filho de imigrantes havia sido criado. Quem
veio comigo na viagem sem eu convidar? Por que sou eu? Eu pensava na castração,
que ainda me parecia forte no mundo atual, cheia de modos de ser criados pelo
marketing.
Sai um pouco atordoada pelo saguão do aeroporto. Pensava em
escrever, também, um texto inspirado na vida de meu neto, que, provavelmente,
gostava de homens e que eu sentia sofrer com a repressão sexual. Eu sofrera tantos preconceitos, pílula,
virgindade... A velha herança do século do Iluminismo repressor, terapêutico,
que hoje é substituído pelo histérico horror ao pobre, ao ignorante, horror aos
que estão fora do padrão.
Acabei vendo
Catherine, que devia ter chegado
enquanto me distraía. Parecia tentar se livrar de alguém.
- Desculpa querida por perturbar você... Mas que ideia
maravilhosa essa, na sua cabeça... um turbante? Ah, que chique! Você é
francesa?
Quase sem acreditar naquela intimidade artificial, ela diz:
- Sou. Paris. Desculpe, estou com pressa...
- Ah, Paris, Paris! Que maravilha! Eu tenho vários vasos de
Paris.
Ela faz uma cara fria e responde:
- É? Eu também.
Seu rosto mostrou todo seu desdém pela adoração ao mundo
europeu. Tentei interromper e salvar a situação:
- Catherine, querida, que saudade! Vamos, vamos, estamos
atrasadas.
Já no estacionamento, nos abraçamos.
- Você está a mesma, Natália!
- Ah, minha querida, aos 58 anos não se é a mesma! Se é
melhor! - falei, sorrindo.
Catherine era talvez 5 anos mais nova que eu, uma mulher
decidida e criativa, forte, de carne e osso, além de prática, cheia da firmeza
e ousadia francesas. Seu espanhol estava afiado, e poucas vezes recorria ao
francês.
- E como vai esse seu país maravilhoso? Gente linda,
divertida, sempre em movimento... Que energia sobe das ruas... Tudo brilha,
tudo fervilha... – falou com um sorriso.
- Lembra aquela vez que você não conseguiu sacar seu
dinheiro? Somos heróis do caos! Sorrimos.
Catherine trabalhava com moda, tinha um pequeno atelier e
fazia roupas de vanguarda.
- Cada vez estou mais cheia disso tudo!
Estivera há dez anos no Brasil (quando meu marido ainda era
vivo), conhecera rapidamente a Amazônia, Foz do Iguaçu, São Paulo,
Florianópolis e depois Buenos Aires, uma semana intensa.
- Ah, que saudades do Ver-o-Peso! Nunca me esquecerei
daquelas cores! Mas, e você? Por que
saiu do Recife
- Minha mãe ficou doente e faleceu. Retornei para conviver
mais com meus filhos.
- Você ainda tem uma filha morando em Curitiba?
- Sim, e outra em Florianópolis.
- Ah, o Brasil! Que energia positiva tem essa terra! Sem o
peso que mil anos de absolutismo e religiosidade punitiva impuseram a nós, na
França. É uma pena que a maioria de seu povo esteja na miséria, pois, sem isso,
o Brasil seria o maior país do mundo!
- Catherine, sempre radical!
- Por supuesto!
Falamos um pouco da viagem.
- Ah, minha amiga! Adoro Porto Alegre! Tem árvores, casas
antigas... Agora aquele bairro, o seu Quartier Latin, como é mesmo....
- Cidade Baixa?
- É, continua com casas antigas?
- Cada vez mais estão levantando espigões... pequenos e
finos...
- Que horror! Algo sensacional aqui é que o velho para
vocês tem cem anos! Sempre achei isso bem cômico, pois o velho para nós é
romano – riu - Porto Alegre é ótima de
caminhar adoro aquela rua, que vai para o lago...
- Fernando Machado? Acho que é uma das primeiras ruas da
cidade... Continuas com a mesma memória implacável...
- É... tão calma, tão luminosa... Lembro-me que você queria
ir ao lago pelo centro e não em linha reta! Estava tão acostumada... Esta é uma
cidade ótima de se ver, podia ser qualquer capital da Europa, é mais calma e
mais organizada. Claro, não tem como se comparar ao resto do Brasil em termos
de natureza. Além disso, é uma cidade burguesa. Parece-me que as pessoas se
vestem para impressionar, ainda há um clima vitoriano... não tem a
agressividade criativa de São Paulo. Tem muita gente bem culta e moderna, mas
vi também muitos novos ricos, muita gente que só pensa em dinheiro, muita
“madame”. Tem algo de conservador nessa cidade. Os homens usam todos a mesma
roupa. As mulheres são mais ousadas, mas sempre burguesas. Assim me pareceu.
Mas deve ser bom viver aqui. Um charme especial...
- Sim, é uma cidade deliciosa. Quem tem dinheiro,
principalmente, vive muito bem. Agora surge uma juventude bastante ousada, mais
desapegada, uma vibração nova.
- Adoraria ter vindo no Fórum Social Mundial, que ocorreu
aqui.
- Sim, foi uma revolução para a cidade: mantos cor de
laranja e turbantes africanos mexeram com preconceitos muito profundos. A mídia
também mudou do “loucos de todo o mundo” para “um evento que nos projeta
internacionalmente”.
- O velho Brasil com vergonha de ser inovador. Uma elite
que sempre quer ser “estrangeira” e sempre “atrasada”... Bem, no Brasil, você
não come larvas como um refugiado de Ruanda; mas, se nasceu sem recursos, acho
que provavelmente acabará num presídio ou vendendo drogas.
Passamos pela “Redenção”.
- Que lindo, adoro este parque, é aquele da feira, não?
- Sim. Lembra, no fim de semana, toda a cidade vem tomar
chimarrão, ver a feira de artesanato, o “Brique”, sentar na grama.
Infelizmente, fim de semana passado, quatro gays foram assassinados aqui. Pensam
que foram skinheads.
- Skinheads no
Brasil? Mas, aqui, todo mundo não é mestiço, não tem sangue de todas as raças?
- Pois é... Sabia que, na década de 30, Porto Alegre
conheceu grupos de jovens que empunharam a bandeira com a suástica? Até o
intendente da cidade, espécie de prefeito, Alberto Bins, era pró-nazismo. Os
escritores Érico Veríssimo e Dyonélio Machado lutaram contra essa tendência
fascista. Getúlio Vargas, presidente do Brasil, tentava fugir à influência
norte-americana negociando também com a Alemanha.
- Mon Dieu! O que
está havendo com o mundo? Isso me faz pensar que talvez ass massas continuem
miseráveis e ignorantes, a elite, compulsiva e aristocrática e a classe média,
as duas coisas. Comércio é impulso: o que aconteceria se o Supereu, a moral
coletiva, fosse o Isso, puro impulso? Uma amiga, lá em Paris, me contou o caso
de um casal conhecido - ela, obcecada por beleza e plásticas, ele, por carros
novos - que esqueceu seu filho na escola por 12 horas. (...)
Afonso Jr. Lima.
Afonso Jr. Lima.
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