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Primeiro, vamos tentar entender características, particularidades, ambições e limitações dos personagens que atuam no lado jurídico da Lava Jato, começando pelo Ministério Público Federal.
A teoria do fato
Um dos grandes feitos recentes do MPF foi a consolidação de uma técnica de investigação chamada de "teoria do fato" – não confundir com o “domínio do fato”.
Consiste em criar uma narrativa inicial, uma teoria inicial que explique o todo. A sistematização da informação facilita na organização dos fatos em torno de uma narrativa lógica.
Mas para ser eficaz - no sentido de se buscar a verdade – a teoria não pode se sobrepor aos fatos. Na medida em que os fatos vão aparecendo, tem que haver ajustes na teoria.
Esse modelo foi introduzido pelo procurador Douglas Fischer, tornou-se sinônimo de sofisticação na investigação e foi adotado pela primeira vez no "mensalão".
Fischer, aliás, foi o autor da livre adaptação da teoria do domínio do fato para condenar os réus da AP 470 – uma interpretação que provocou a indignação do próprio autor, Claus Roxin.
Na verdade, essa teoria do fato é um método intuitivo adotado por qualquer repórter mais experiente.
No fim dos anos 90, após a cobertura da CPI dos Precatórios, o diretor de redação da Folha, Otávio Frias Filho, me pediu sugestões sobre estratégias de cobertura, para serem discutidas internamente.
Para as coberturas extensivas, defendi a necessidade de se montar uma espécie de força tarefa, em uma sala de situação, trabalhando em cima de uma hipótese inicial, assim que os fatos permitissem montar essa hipótese. Mas alertava: a hipótese tem que ser flexível, para ir se alterando à luz dos fatos que forem sendo levantados; não se pode ficar prisioneiro da primeira versão.
Aliás, a ditadura da primeira versão é a responsável pela maioria dos grandes crimes de imprensa.
No MPF, o pensamento burocrático da corporação, que se organiza em torno de manuais de procedimentos, inverteu: em vez de uma teoria flexível, curvando-se aos fatos, os fatos passaram a se subordinar à teoria. Na medida em que vão juntando depoimentos, os fatos passam a ser encaixados à martelada na teoria, que permanece imutável. O pensamento burocrático não imagina a incompletude da teoria, que precisa ser formada pelos fatos. Imagina que qualquer correção de rotas significaria desqualificar os trabalhos, pois revelando que a hipótese inicial era incompleta. Com isso, deixa de ser teoria para se transformar em ideologia, fé cega, faça amolada.
Genoíno foi vítima dessa irracionalidade.
No mensalão, a teoria do fato defendia a tese da formação de quadrilha. Todos sabiam que Genoíno era inocente, inclusive o PGR Roberto Gurgel. Como presidente do PT, meramente dera um aval burocrático a dois contratos de empréstimo porque o estatuto do partido obrigava a isso. Mas se fosse inocentado, toda a teoria da organização criminosa cairia por terra.
Sacrificaram um inocente, como o próprio Gurgel admitiu, pela manutenção da teoria.
Desde o início da Lava Jato, a teoria do fato definia a existência de uma organização criminosa, chefiada por Lula, distribuida entre o núcleo político, o financeiro e o empresarial. Na verdade, os fatos conhecidos são de uma estrutura de empreiteiras, atuando em obras da União, estados e municípios, e financiando todos os partidos. Bastou uma teoria do fato enviesada para direcionar a investigação.
Esse modelo de atuação explica a perseguição a Lula. E não consegue explicar porque, de repente, aparecem Aécio Neves, José Serra, Aloisio Nunes, Antonio Anastasia, Rodoanel, Cidade Administrativa etc., que não cabiam na teoria do fato inicial. Obviamente houve um viés político na definição da teoria do fato inicial.
A Força Tarefa e o domínio da 1a Instância
Um segundo problema é a tal Força Tarefa.
Quando cedeu às pressões da Lava Jato e criou a Força Tarefa, Janot entregou o processo nas mãos da Lava Jato.
Seus antecessores, Gurgel e Antônio Fernando de Souza nunca criaram Forças Tarefas por uma razão objetiva: é investimento tão elevado que, para justificar o custo, obriga a trazer resultados de qualquer maneira. Então acaba induzindo ao prejulgamento. O MPF não tem liberdade para arquivar, pois o arquivamento significaria admitir que o recurso foi investido em vão. Seria considerado dinheiro jogado fora.
Houve mais problemas.
Janot poderia ter criado a Força Tarefa e centralizado as investigações. Se tivesse mantido a operação em sua mão, por conta do foro privilegiado, teria o comando da operação. Na medida em que tivesse que processar quem não tivesse foro privilegiado, mandaria para 1a instancia.
Com Força Tarefa ocorreu a inversão total. É a Lava Jato que decide o que vai chegar ou não no Supremo. Eles determinam o que entra na agenda.
Embora críticos dos métodos de Sérgio Moro, Ministros do STF nada puderam fazer na fase inicial, devido ao rigor técnico com que Moro vem conduzindo o processo.
O enigma Rodrigo Janot
Tem-se, então, um sistema de investigação que define, a priori, a presunção de culpa, uma Força Tarefa que precisa apresentar resultados a qualquer preço, e uma definição de atribuições que deixou na 1a Instância o controle da pauta podendo, a partir de Curitiba, provocar terremotos em todo o país.
É nesse universo que se move o PGR Janot.
Na sua carreira no MPF, passou ao largo do direito penal e dos grandes temas sociais. Seu campo de atuação era os direitos do consumidor.
Desde cedo, acoplou-se ao grupo dos tuiuiús – os procuradores que reagiram contra as limitações impostas pelo chamado Engavetador Geral da República Geraldo Brindeiro -, trabalhando diretamente com o ex-procurador geral Cláudio Fontelles e com Álvaro Augusto Ribeiro Costa, duas figuras referenciais do MPF. Depois, venceu as eleições para presidir a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República).
Essa experiência deu-lhe um conhecimento único da geografia da casa. Internamente é um estrategista com excelente visão da micropolítica, que introduziu modificações relevantes na organização interna da PGR.
Mas, no campo nacional, tem conhecimento escasso da macropolítica, dos impactos das decisões sobre a economia, a política, o emprego, as questões geopolíticas internacionais.
Quando foi o mais votado na lista tríplice, para o público externo era um completo desconhecido. Recorreu ao então a procuradores com mais inserção externa, para os contatos políticos necessários à sua indicação.
Visitou José Dirceu no Hotel Nahoum. Por duas vezes jantou com o então presidente do PT José Genoíno, em uma delas na companhia do subprocurador Eugênio Aragão (último Ministro da Justiça de Dilma), de José Eduardo Cardozo e Sigmaringa Seixas - ex-deputado e o principal consultor de Lula para indicações no meio Jurídico.
No jantar, tornou-se emotivo. Chegou a oferecer sua casa para Genoíno, sabedor das dificuldades por que passava e da inocência dele no caso do "mensalão".
Indicado PGR, na primeira semana mandou prender todos os condenados da AP 470, incluindo o próprio Genoíno. E deu uma bronca em Aurélio Rios, Procurador dos Direitos Humanos, pelo fato de ter ido ao presídio da Papuda conferir se estava tudo bem com os prisioneiros políticos.
Foi a primeira grande decepção dos amigos históricos.
A segunda decepção foi no episódio envolvendo o Ministro Marcelo Navarro. Ex-procurador, ex-desembargador pelo TRF-5. Navarro é uma unanimidade no meio jurídico, pelo conhecimento, conduta e caráter.
Em plena campanha do impeachment, Janot anunciou abertura de inquérito para apurar acusações de indicação política de Navarro em troca de um suposto acordo para votar a favor da libertação de Marcelo Odebrecht.
Navarro sempre foi um garantista. Portanto seu voto a favor da libertação de Marcelo não fugiu à lógica. E nem foi decisivo, pois os demais Ministros votaram a favor da manutenção da prisão. A “denúncia” do acordo partiu de ex-senador Delcídio do Amaral no seu acordo de delação.
Dois detalhes chamaram a atenção dos amigos. O primeiro, o fato do próprio Janot ter sido um dos cabos eleitorais de Navarro. O segundo, suas críticas contra o antecessor Gurgel, por ter desenterrado um inquérito contra Renan Calheiros na véspera das eleições para a presidência do Senado. O factoide Navarro foi empinado em pleno processo do impeachment.
O terceiro, a abertura de processo contra Lula e Dilma por obstrução da Justiça, a partir das conversas gravadas ilegalmente e divulgadas.
Houve uma reunião pesada entre ele, Fontelles, Álvaro e Wagner Gonçalves, ex-presidente da ANPR. Foi uma conversa entre amigos, mas em tom duro.
Primeiro, por ter sido uma escuta ilegalmente divulgada. O segundo pela obviedade de que uma carta de nomeação assinada apenas por Lula, não assinada por Dilma, jamais poderia ser salvo-conduto para quem quer que fosse. Terceira, devido ao fato da ira de Janot ter sido em função de um desabafo de Lula, com críticas a ele em uma conversa informal grampeada.
Na parte mais tensa da conversa, os amigos cobraram isenção e falaram duro sobre a blindagem que mantinha até então sobre Aécio Neves.
Coincidência ou não, foi depois desses entreveros verbais que Janot decidiu investigar Aécio, inclusive tirando da gaveta inquérito sobre as contas em Liechtenstein, parado desde 2010.
Na parte inicial da Lava Jato, teve alguns embates com a Força Tarefa. Em pelo menos um episódio, recuou. Foi quando aceitou fechar um acordo de leniência com uma das empresas. Os procuradores da Lava Jato ameaçaram pedir demissão em bloco, contando com o respaldo das Organizações Globo. Janot recuou.
Em outros momentos, acabou avalizando as iniciativas mais radicais do grupo, como o vazamento ilegal dos grampos envolvendo a presidente Dilma e Lula.
Nos últimos tempos, assumiu uma postura persecutória em relação a Dilma e Lula. E parece ter se revestido de uma enorme confiança em relação ao poder de manejar informações e contar com respaldo da opinião pública – isto é, da Globo.
Na terça, fez sua grande aposta, pedindo a prisão de Renan Calheiros, José Sarney e Romero Jucá. Ou enterra definitivamente o modelo político que emerge das diretas; ou compromete definitivamente a Lava Jato.
O enfraquecimento no Supremo e o fator Gilmar
No Supremo, há três Ministros que não se vergam: Marco Aurélio de Mello, Teori Zavascki e Lewandowski.
A maior surpresa foi Luiz Facchin. Até hoje poucos sabem o que ocorreu com seu voto sobre o rito do impeachment. Contra todas as sinalizações, Facchin apresentou um voto desconjuntado, tão ostensivamente parcial que foi destruído por Luís Roberto Barroso.
Algo aconteceu na véspera. A pelo menos um conhecido, um Fachhin disse que iria explicar o que aconteceu. Não explicou, deixando no ar a certeza de que foi vítima de alguma pressão indevida.
Seu relatório foi destruído pelo colega Luís Roberto Barroso. Há indícios de que a apresentação de Barroso se baseou no relatório original do próprio Facchin – mas são apenas boatos.
Curiosamente, esse recuo de Facchin foi mais uma das vitórias do atrevimento de Gilmar Mendes contra a tibieza de governos petistas.
A primeira grande vitória foi no factoide do grampo sem áudio – a suposta gravação de uma conversa entre Gilmar e o ex-senador Demóstenes Torres. Gilmar blefou em cima de Lula e ganhou a parada: Lula afastou o delegado Paulo Lacerda da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) apesar dos apelos quase desesperados do ex-Ministro da Justiça Márcio Thomas Bastos.
Márcio chegou a procurar a então Ministra-Chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, pedindo que abrisse os olhos de Lula. A Polícia Federal era constituída de vários grupos políticos, e Lacerda liderava o grupo mais correto e isento. Caindo, seu grupo se enfraqueceria abrindo espaço para o do delegado Luiz Fernando, figura controvertida. Seus conselhos não foram ouvidos e Lacerda foi defenestrado em cima de denúncias falsas. Ali começou a rebelião da PF.
O segundo blefe foi na indicação de Facchin.
Por fora, corria o subprocurador Eugênio Aragão, colega de Gilmar nos cursos que fizeram na Alemanha – consta que foi aprovado com nota superior ao do colega -, pessoa destemida, inclusive nos embates com Gilmar no TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Quando, no TSE, Gilmar deu início ao terceiro turno, ameaçando embargar a chapa Dilma-Temer através do expediente da criminalização do caixa 1, foi procurado por Aloisio Mercadante oferecendo uma barganha: se não embargasse a candidatura de Dilma, o governo se comprometeria a não indicar Aragão para o Supremo.
Na ação em questão, Gilmar havia pressionado tão pesadamente os técnicos do TSE para que produzissem um laudo incriminador das contas de campanha, que o resultado foi um laudo cheio de falhas primárias, com dupla contagem de despesas entre outros pecados. Era um laudo tão vulnerável que se pensou ter sido uma retaliação dos técnicos contra as pressões de Gilmar. Quando o relatório de Gilmar foi para a votação, o laudo já tinha sido destruído pelos demais Ministros e pelo procurador eleitoral Eugênio Aragão.
Mercadante entregou de graça uma indicação para o Supremo que poderia ter sido o contraponto às ofensivas de Gilmar.
O embate final
Esses são os jogadores principais.
Há um embate às claras entre a Lava Jato e o STF, com procuradores e delegados pressionando Teori Zavascki através da imprensa. Janot entrou no jogo de pressão, através do provável vazamento dos grampos de Sérgio Machado.
Se concede o que a Lava Jato e Janot querem, Teori confere-lhes um poder ainda maior. Praticamente instaurará a República dos Procuradores.
Por outro lado, não poderá ir contra as provas apresentadas – se de fato forem consistentes, como se pensa – sob pena de desmoralizar a Justiça e, enfraquecendo a operação, dar gás para uma coalizão política barra-pesada.
O fato do Supremo ter chegado a esse impasse é a prova maior da vergonhosa situação das instituições brasileiras, todas elas – Executivo, Legislativo, Judiciário, Mídia, partidos políticos – pequenas, microscópicas para um país que se pretende moderno.
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