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quinta-feira, agosto 30, 2018

"Profissões para mulheres" por um mestiço na colônia

A secretária de vocês me convidou para falar, tendo como base um texto lido para a Sociedade de Auxílio às Mulheres, sobre "a profissão do escritor hoje". Não sei se era uma piada.

O que eu teria para dizer de "Profissões para mulheres", esse texto de Virgínia Woolf de 1931?
Eu nasci no fim do século XX, sou homem, nunca me senti particularmente "excluído" (talvez por absoluta distração). Eu sou um mestiço na colônia (penal?) - com acesso a alguma educação, e isso me faz viajante não-classificado. Não deu certo me formatarem como um "europeu no exílio". O lugar que nós, nativos, ocupamos é o de consumidor da televisão, de repetidor de teses metropolitanas, de audiência para um círculo intelectual nobre aprovado.

O lugar da mulher (o "anjo do lar"), ainda que introjetado como hesitação e medo,
limitava a simples ampliação de sua inteligência pelo estudo - assim como o pânico econômico constante, a informação desconexa, o inoculado desejo de diversão nos limita.

Uma mulher, em sua época, se expressava através de palavras escritas - antes de poder encontrar outras profissões - devido ao "preço baixo do papel". Foi exatamente por isso que eu, sempre desejando outras coisas, acabei escrevendo desde cedo. Um piano era caro demais.

Eu só percebi o quanto precisava de coragem para aceitar que eu tinha voz depois de ser duramente criticado. A sociedade da competição odeia o talento. Eu também tive antepassados "excelentes", mas não o círculo de corte para garantir publicações, empregos e bolsas.

Outro ponto que ela comenta é sobre a necessidade que a mulher havia introjetado de "concordar com a opinião e a vontade  dos outros". Mas numa sociedade que vive assustada com o medo de não ser "o melhor", portanto não ser "escolhido", nada de bom pode vir da dissenção. Bajulação é ascensão. A nova geração parece ter engolido, com a ascensão econômica, as doenças da classe média: competição, individualismo e agressiva ambição.

Eu, por outro lado, já ouvi: "Para um artista, não pega bem ser crítico". Se as instituições, seleções, em outros termos, orçamentos e escolhas, estão na mão de uma elite com ar de família, como um artista pode se posicionar politicamente e sobreviver? O corte nas verbas mais recente, fez com que os espaços selecionassem ainda mais "os melhores". No horizonte, apenas empresas competindo por incentivos. Nada disso é tema para a arte.

Ao lado da repressão da censura corporativa e dos bancos criando a austeridade, temos agora um candidato a presidente que permite a todos os que viveram a pobreza cognitiva mostrar seu preconceito com indignação. Numa palestra sobre feminismo, vejo um arquiteto criticar o feminismo.

"Não deixe ninguém perceber que você tem opinião própria" - eu poderia traduzir como "da triste sina de ser um nativo". A primeira armadilha é se esquecer de sua história e viver como "homem branco intelectual", um dos líderes dos escravizados.

Para os herdeiros o saber é uma arma de controle: você deve se sentir envergonhado por não ter o domínio desses conceitos, o que eu tenho para falar é sempre muito mais importante. Enquanto o conhecimento, na verdade, não significa acúmulo, mas boas perguntas. A educação é uma forma de formar um ponto-de-vista sobre o mundo, escapando do poder centralizado. 

Hoje, não é apenas caro ter - comprando na multiplicidade de experiências - opinião própria, mas é a cultura como um todo que parece censurada, por ser o não classificável, ruptura, síntese, utopia, espelho: a política. 

Atualmente, está à venda uma versão da cultura na qual a política não existe. É como se as pessoas se apropriassem de ícones do passado para alimentar um fetiche cultural e status. Algumas das pessoas mais convencionais e autoritárias que conheço ostentam um "amor à arte" sem limites.

Para ordenar as prioridades, vencer as mentiras, imaginar justiça e exigir responsabilidade, temos de vencer a confusão da mente coletiva, inverter certezas e assumir riscos. Porque podemos fazer coisas estéticas sem propor novos valores. O meu fantasma dizia: "Use todo seu esforço para se distanciar de seu povo, da realidade". 

No mundo todo, mas com especial perigo no Brasil, terra do absolutismo da comunicação, o primeiro direito humano, o direito a uma vida decente - com salário digno, casas, escolas, saúde - é colocado de lado: na consciência pública criada por informação comercial, o debate foi interditado, não pode haver pluralidade, porque isso pode gerar demandas. O fascismo aberto que odeia os "direitos humanos" (em geral a pauta feminista, LGBT, antirracista, respeito para com os presos, etc.) é só a face mais cruel disso.

Podemos pensar que, em uma cultura obcecada por dinheiro, os teatros são um obstáculo à torres novas e a uma cidade brilhante morta. A geração pós-80/2000 cresceu recebendo a ideia de que dinheiro é tudo e vale tudo por dinheiro. Os pobres são o que lhe impede de conseguir subir, impostos, salários gordos (que prejudicam as empresas) ou empregadas domésticas com direitos trabalhistas. A arte é uma profissão sem meta.

Hoje, somos todos pensados para não ter opiniões próprias - a menos que as usemos para marcar hierarquia e status. A menos que nossa imaginação seja uma produção na estrutura. A "imaginação vaguear livre" parece simplesmente um crime contra o progresso.

Woolf também comenta sobre escritoras que não podem "falar a verdade" e "ficam bloqueadas pelo extremo convencionalismo do outro sexo". Repressão, portanto, pela estrutura projetada para você e pela culpa e vergonha internalizada.

Por ter me dedicado um pouco à Filosofia, sempre me surpreende quando vejo uma pessoa jovem, aparelhada de títulos e autores, impor-se sobre a plateia com um discurso pretensioso; pareço esse alguém que é tirado do livre fluxo da imaginação por uma rocha de preconceito. Sou um observador receptor, apenas, como se a ela fosse dito: "Você não é uma escritora, é uma mulher!" Quem você pensa que é para ter ideias? Uma palestrante até cita que um famoso "sábio" psicanalista de sua cidade teve coragem de dizer: "Feminismo, coisa de mulher louca!"

Além disso, pensemos no colonialismo conceitual que gera o glamour da celebridade intelectual do "mundo civilizado". Como você não leu Butler, você é sub-espécie.

Outra coisa, claro, é usar Aristóteles como matéria-prima, cavar nele um sistema de pensamento alternativo, gerando perguntas que movem o conhecer. Formar comunidades de utopia. Mas em geral, nossos estudiosos ficaram acostumados a usar um vocabulário que marca hierarquia de classe (quem duvida desse sentido oculto do lacanês?)

Removidos os obstáculos externos, Woolf diz, há os de dentro.
Você está ocupado tentando comprar sua vida que não pode pensar em alternativas e portanto não imaginará utopias.
Eu não sou mulher, mas escrever não parece ser também uma profissão para mim. E a criatividade não é para vocês.
Apesar disso, espero que minhas dúvidas sejam de utilidade para os senhores e senhoras.

Afonso Lima


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