Na sua autobiografia, Dom Paulo Evaristo Arns lembra do final da década
de 70, quando os trabalhadores de São Paulo sentiam que "vinham perdendo o
poder aquisitivo de seu salário mês a mês... a constante destruição da saúde,
dos estudos, da moradia, afinal, da vida de suas famílias". Apesar das
limitações do sistema militar, decidiram fazer uma greve de grandes proporções.
Foram fechados os centros de reunião dos operários, e as reuniões passaram a
ocorrer nos salões paroquiais.
Em 30 de outubro de 1979, quando estavam reunidos na cúria os membros da
Comissão de Justiça e Paz, chega a notícia de que os operários reunidos na
Capela do Socorro tinham sido expulsos com cassetetes, gás lacrimogênio e
ameaças de tiros. O presidente da Pastoral Operária, Santo Dias da Silva,
virou-se para os operários pedindo que não reagissem. Um tiro o atingiu pelas
costas.
Quarenta anos depois, parece que todos os piores pesadelos do Brasil
estão vindo à tona: repressão para barrar demandas sociais, a ausência de senso
republicano nos donos do poder econômico e formadores de opinião pública,
conservadorismo nunca desafiado por educação de qualidade, expropriação total
de recursos naturais por transnacionais...
Vejamos os notícias recentes:
8/12 - Os dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST) na Paraíba Rodrigo, Celestino, 38 anos, do acampamento Dom José Maria
Pires, e José Bernardo da Silva, 46 anos, do
assentamento Zumbi dos Palmares, foram executados.
21/12 - Um cozinheiro que rede internacional de hotéis
na região do Paraíso, ofende um casal e diz: “seus gays, merecem morrer”.
Depois, assassina um homem de 30 anos em plena Avenida Paulista.
- O policial militar João Maria Figueiredo, 36 anos, foi morto com tiros
de arma que deveria ser de uso exclusivo das forças militares brasileiras. João
trabalhou como segurança da governadora eleita Fátima Bezerra (PT) e era um dos
fundadores do Movimento Policiais Antifascismo.
23/12 - Milton Dinho, locutor da Rádio Cultural FM de Sorocaba e
militante da União de Negros pela Igualdade (Unegro), foi alvejado por
"supostamente não ter parado durante a abordagem realizada pela Polícia
Militar (PM)".
26/12 - A GCM (Guarda Civil Metropolitana) reprimiu uma manifestação
contra a reforma na previdências dos funcionários do município de São Paulo na
tarde desta quarta-feira... os guardas tentaram retirar faixas dos
manifestantes, que reclamaram e receberam em troca jatos de gás de pimenta.
(ponte.org)
Que pode conectar esses fatos e dar-lhes sentido?
A primeira ideia que me vem é a de dois eixos: opressão e
desinformação.
O brasileiro médio é, antes de tudo, um desinformado. A solução fácil
(ilusória) é a "ordem" à qualquer custo.
Tenho conversado com pessoas de todos os tipos: temos o sistema de
desinformação operando em vários níveis com a ideia de inimigo interno.
Existe o grupo de pouca escolaridade cuja visão de mundo é formada por
chavões, preconceitos, frases-clichê que misturam impressões e tradições das
mais conservadoras. Cuba, saudade dos militares, a arma como sonho de
consumo.
Existe o grupo técnico-proprietário, com chavões jornalísticos,
informações sem conexão com o contexto e soluções baseadas no medo de
classe. Nossa sociedade pode ser bem explicada por um sentimento de
aristocracia branca, confortável com a existência de seres “inferiores”, que
podem viver uma vida miserável e não devem participar das decisões.
Existe o orgulho do desinformado, a raiva desinformada, que repete a
opinião simplória como "vingança".
Você pode usar o medo e o ressentimento do desinformado para tomar o
poder. Mas o preço da desigualdade é a violência - o Estado como controle, o
crime como retomada dos meios de produção de vida, o dinheiro.
Na nova ditadura de face Judicial, a razão comum, na qual diversas
opiniões convivem e acham um centro possível, se perde em nome da busca de
culpados fáceis, fruto da narrativa do sistema banqueiro-midiático, do
reacionarismo autoritário anticomunista e do fundamentalismo religioso, que
direcionam a raiva com a crise do brasileiro kamikaze desinformado para os
movimentos sociais e as vítimas da opressão.
A opressão. A repressão opera também pela formação de uma certeza fanática.
Para o tele-pastor Silas Malafaia, ser gay é "é uma questão de
comportamento, um homossexual pode abandonar essa prática e tornar-se
heterossexual; até porque, a maioria dos homossexuais tem algum grau de atração
pelo sexo oposto”.
Em São Paulo, segundo a vereadora Juliana Cardoso, na aprovação do Plano
Municipal de Educação, vendeu-se a ideia de que, se a discussão de gênero fosse
incluída, culminaria com a extinção de banheiros masculinos e femininos, nas
escolas. Um sistema de eleitores desinformados, políticos que respondem a essa
tradição antidemocrática e líderes religiosos com projetos de poder derruba o
acordo baseado no bem comum e no que é melhor para todos.
A
expropriação dos recursos naturais (os camponeses são assediados por
fazendeiros com propostas de arrendamento para monocultura) se dá até mesmo
pela violência do abandono:
“Não há investimentos em estradas, habitação, escola, posto de saúde e nem em crédito. Porque, por mais que você tenha boas ideias, força de vontade e os braços para produzir, sem o subsídio do Estado isso é praticamente inviável', pondera Ayala Dias Ferreira é integrante do Movimento Sem Terra (MST)"
“Não há investimentos em estradas, habitação, escola, posto de saúde e nem em crédito. Porque, por mais que você tenha boas ideias, força de vontade e os braços para produzir, sem o subsídio do Estado isso é praticamente inviável', pondera Ayala Dias Ferreira é integrante do Movimento Sem Terra (MST)"
A opressão por instrumentos legais é a estrutura do Brasil oculto. A impunidade
é a regra para a violência no campo, sendo que 54% da área total em conflito no
Brasil fica em terras indígenas.
Sobre a morte do policial João Maria Figueiredo, a Direção do MST-SP
afirmou em nota:
"As autoridades brasileiras silenciam diante deste cruel tribunal
das ruas, no qual a força policial reúne ao mesmo tempo a função de abordar,
prender, julgar, condenar e submeter a pena, tudo em fração de segundos, no
apertar do gatilho".
Segundo o portal Ponte Jornalismo, uma pessoa morre a cada três horas,
apesar do investimento brutal em policiamento (R$ 8,9 bilhões em 2014 no estado
de São Paulo, enquanto, em 2013, o investimento em cultura foi de R$ 1,09
bilhão, cerca de 0,6% do orçamento total); entre 2009 e 2016, foram
21.897 vítimas fatais de violência policial, enquanto 4.224 agentes
morreram.
Também o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e a Agência
Brasileira de Inteligência (Abin), seguem monitorando movimentos sociais.
Conforme o The Intercept Brasil (dez/2016):
"A historiadora Nina Schneider considera preocupante que, sob o
governo Michel Temer, a Abin tenha em mãos o banco de dados do GEO-PR. 'Nas
mãos erradas, esses dados sensíveis podem facilitar a repressão política.
Esperamos que isso não aconteça, porém há indícios preocupantes que exigem a nossa
atenção', diz ela.
Ao cidadão "fracassado" no modelo de consumismo instalado é
dada a opção de ser mais "forte" oprimindo um em pior situação: o
imigrante, o refugiado, o morador de
rua...
Ao invés de criar igualdade pelos serviços públicos, ele crê que inflação
(salários altos) e o "Estado" (patrimônio coletivo) são o
problema.
A ideia republicana de acordo está sendo retirada do sistema. Nossa
longa tradição autoritária anistiada passou a ser desejo do pobre desempoderado
pelo crime na parada de ônibus. Mas existem aí dois caminhos apontados: a
informação e a utopia de uma sociedade menos opressora.
O cardeal da Esperança nos ensina com sua história. Em 1971, respondendo
a alguns bispos que recolheram casos de violações, Dom Paulo teria audiência
com o general Garrastazu Médici. Denunciou os "esquadrões do terror",
ao que o presidente respondeu: "O senhor vem defender bandidos que matam
inocentes. Seu lugar é na sacristia". Nessa noite, Dom Paulo fala no
Seminário Anglicano conclamando o povo a "livrar o país da situação
calamitosa em que se encontra e retornar à democracia".
Negligência do Estado, cortes de investimentos, controle da informação, ideologização
das instituições, silenciamento - são muitos os desafios. O que é certo é que a
humanidade tem também um sentido de solidariedade e de justiça, e esses valores
prevalecerão porque são a luta pela vida.
Afonso Jr. Ferreira de Lima
Filósofo, escritor
ARNS, Paulo Evaristo. Da esperança à utopia: testemunho de uma vida. Rio
de Janeiro: Sextante, 2001.
https://ponte.org/policia-mata-uma-pessoa-a-cada-3-horas-no-pais-que-mata-um-policial-todo-dia/
https://ponte.org/todo-dia-pelo-menos-um-policial-militar-desiste-da-profissao-em-sp/
https://theintercept.com/2016/12/05/abin-tem-megabanco-de-dados-sobre-movimentos-sociais/
https://noticias.r7.com/sao-paulo/governo-de-alckmin-recebe-criticas-na-area-da-cultura-14052014
https://noticias.r7.com/sao-paulo/governo-de-alckmin-recebe-criticas-na-area-da-cultura-14052014
https://www.youtube.com/watch?v=bFoT_M_V0Y8&t=2997s
https://www.youtube.com/watch?v=kBsP0KkYPTs
https://www.extraclasse.org.br/exclusivoweb/2018/04/as-pecas-da-engrenagem-da-violencia-no-campo-grileiros-fazendeiros-e-o-estado/
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