CANÇÕES
PARA
DIAS
DIFÍCEIS
Afonso
Jr. Lima
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Este projeto contou com o apoio de
Suely Mandelbaum, Jorge Eduardo Rubies, Felipe Francisco De Souza e Teresa de Almeida Prado.
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Biblioteca Nacional
697593, em 28/10/2015
Este projeto contou com o apoio de
Suely Mandelbaum, Jorge Eduardo Rubies, Felipe Francisco De Souza e Teresa de Almeida Prado.
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O
rapaz entrou na loja.
-
O senhor teria um tecido mais grosso, bonito, talvez aveludado...
quero forrar uma cadeira – o homem de idade abriu um sorriso e
mostrou algumas opções.
É
tão bom ser atendido por pessoas como o senhor, o comércio
tradicional. Estou chegando no bairro. Há quanto tempo...Minha família chegou em 1912.
O senhor é judeu?
Sou de origem síria. Prazer, Aimar.
David. Talvez tenha conhecido meu avô. Jacob, ele morava aqui em frente.
Claro. Meu amigo durante uma vida toda. Você está aqui agora?
Temporariamente.
Vamos tomar um café – ele procura algo, escreve num papel – Me ligue e combinamos.
Obrigado.
Ele observava o mar e sua jovem esposa que saía da água, loira, muito magra, belíssima. O filho havia trazido aquele colega que lhe dava calafrios. Jogavam bola à direita. Ia ser um verão estranho. Sentiu um mal estar. Coração? O médico dissera que aos 45 já era preciso fazer cooper e comer bem. Quis voltar para casa. Ela quis ficar mais um pouco.
Por
que motivo o pai havia sido preso? Recebia revistas de música e
poesia de Moscou. O carteiro não gostava de comunistas.
Papai
e mamãe foram levados de trem. Mamãe foi levada assim que
desembarcou para a enfermaria. Nunca mais a vimos.
Seu
avô morreu. Ele juntou suas coisas, despediu-se dos sócios do
escritório, foi morar no apartamento grande, antigo, com paredes
cobertas de livros no Bom Retiro. Sentiu-se livre no escuro.
Quando
eu era criança, meu pai foi me ver no campeonato de futebol da
escola. Eu perdi. “incompetente”, ele disse.
Trata-se do
monopólio da opinião e das letras. A primeira palavra do Gênesis
é: Be-Reishit
(no começo). Be
é a segunda letra do alfabeto, equivale ao dois.
Eu
nunca tive muito contato com meu avô. Eu lembrei de um almoço num
aniversário em um restaurante do Bom Retiro. Ele contou como tomava
banho nos rios e corria da sua casa até o Brás com os amigos. De
como entrava pela janela dos cinemas para ver filmes de graça. De
como o pegaram e o fizeram sair pela janela. Fora isso, são poucas
as lembranças. O pai nunca fizera muita questão de estarem juntos.
Considerava a religião do pai algo “exótico”. O avô mostrara
uns papéis, “uma coisa” que estava escrevendo.
Ele ficara na casa
com o rapaz. Como tratar um universitário? Ofereceu leite e
sanduíche, não obrigado. Ficou no quarto do filho. Foi ver o carro
na garagem. O rapaz chegou na porta. Ele achava que a mulher tinha
gostado do Miguel.
O Padre sentou na
mesa do Santo Ofício.
Queria liberdade
para o versejador e para o profanador Miguel.
Estão com medo,
atacam. Os homens dizem saber que sua avó era “mulata, bruxa e
suja”.
Por
que se sentia triste depois de tanto trabalho? Sem objetivos. Sem
concentração. Tinha o suficiente. Ele queria agora pensar coisas
diferentes. Ele precisava negar um pouco tudo que era rápido demais
para fazer sentido. Ele sentia que o mundo estava mais e mais perto
de certezas construídas sobre mera repetição.
Sim,
ele sabia que o avô tinha passado por todas aquelas coisas ainda
criança. Assunto um pouco preservado, um pouco proibido. Logo que
chegou, depois de passar pelos Estados Unidos (seu pai não gostou)
contava que comia demais e acabou engordando. O pai o colocou no
futebol. Quando ele chegou no Brasil e começou a ver homens sujos,
sem roupa, miseráveis pelas calçadas, chorava.
O homem foi obrigado
a vestir roupa de palhaço e a assistir missa assim. Isso porque foi
acusado de criar “academia” na sua casa.
Corredor, fecharam
a porta na mesma hora, sorriu. Seu Rey era um homem alto, de cabelos
grisalhos. Neto do Jacó? Gostava dele, o comuna. Ele o convidou para
participar de seu grupo de estudo. “Nós nos reunimos para salvar o
Brasil”. “Salvar?” “Venha, depois de tudo jogamos cartas”.
Nas paredes máscaras mexicanas e africanas.
- Esse é meu avô? - seu Aimar fez sinal que sim - Quem é essa da foto?
Nas paredes máscaras mexicanas e africanas.
- Esse é meu avô? - seu Aimar fez sinal que sim - Quem é essa da foto?
Jacob
fora tomar um café com o amigo físico. Décadas de conversas.
Falavam sobre a paupérrima situação da capitania no início.
-
O único livro que havia em São Paulo era Cervantes – dizia Mário.
Nada subia a serra.
-
Uma igreja e suas mil almas... Devemos tudo à voluptuosidade da
Marquesa de Santos...
-
Nada como ser caminho.
Meia
hora depois estavam falando de Dante.
-
Será mesmo, Mário?
-
Por que não?
-
Queria crer que sim. Uma seita influenciada pelo islã...
-
Olha a matéria do Paraíso... É a luz... Isso é meio física
quântica, não – ele disse.
-
Sim. Sabe o que eu descobri. Que dependendo da forma que se traduz o
hebraico pode-se dizer do início do Gênese: “No começo criava
Deus” ou “O começo criando Deus”.
-
Muito metalinguístico – Mario riu.
- Por isso somos perseguidos. Trata-se do monopólio da opinião e das letras. A primeira palavra do Gênesis é: Be-Reishit (no começo). Be é a segunda letra do alfabeto, equivale ao dois.
- Por isso somos perseguidos. Trata-se do monopólio da opinião e das letras. A primeira palavra do Gênesis é: Be-Reishit (no começo). Be é a segunda letra do alfabeto, equivale ao dois.
-
Não vivemos anos incríveis? De repente a ciência, que era esse
monstro indestrutível e definia tudo, definia até o humano, parece
ter virado uma coisa mais leve, muito leve, uma coisa poética.
-
Em dado momento simplesmente ruiu. Tudo ruiu. A ciência toda com seu
determinismo completo.
Imagens de pastores
tendo suas ovelhas expulsas. Pedras nas casas. Fogo nos campos. Os
colonos furiosos.
Por
que esse grupo, afinal? A não ser por que... Aquela amiga dizia que
a família era judia. Não. Quem não é?
Caracterização:
difícil.
Enredo:
não é claro.
Motivação:
desisto.
Ação: uma parada.
Ação: uma parada.
A
amiga da família disse que era uma família de judeus. Seria um
grupo de judeus portugueses. Afinal, quem não é judeu português?
E, afinal, o que é ser judeu? Os judeus foram os primeiros
brasileiros. Deve ser por isso que sofremos, que temos divisões. “Eu
sou uma pergunta”.
A
coisa.
Eu
não conheço bem sua vida interior. Você parece uma sombra para
mim, quero crer que sou mais forte, ativo e capaz de dominar o mundo
que você. Eu realmente não sei se você é capaz de quaisquer dos
sentimentos top em roteiros: raiva, amor, medo, inveja, vingança.
Será
que você é uma metáfora? Uma forma de emitir um julgamento sobre o
mundo? Um apelo ao inútil? Será que tudo tem a ver com o fato de
ter existido uma terrível injustiça pesando sobre a criança que eu
fui, uma criança abandonada? Nem posso fingir que me importo com a
crise do que quer que seja.
Sento
na palestra de um amigo escritor. Uma moça pergunta praticamente
sobre o sentido da vida. Fico pensando no que aconteceu com o
pensamento. Você é humilhado, pisado, ninguém quer você e no
momento seguinte assume seu papel como “reflexionador” da
cultura.
Talvez
o que o defina seja a falta, a busca.
Meus avós eram
agricultores. De repente, viram suas cidades serem invadidas por
monstros de concreto. Os membros da elite pareciam irreconhecíveis,
falavam outra língua, subestimavam os mais velhos, queriam
disciplinar o povo com métodos modernos, carros, máquinas e leis
seculares.
Antes
de tudo, agora, a vida era voltada para a exportação. A manufatura
local foi esmagada. Tínhamos que comprar panos, facas, louças do
estrangeiro.
A
religião era algo primitivo e ingênuo.
No
Egito, Napoleão veio com exércitos modernos, biblioteca e
laboratórios. As províncias árabes do império otomano, a quem
havia sido prometida independência depois da Primeira Guerra,
tornaram-se protetorados e mandatos dos ocidentais.
Meus
avós diziam que o mundo tinha sido enfeitiçado.
1646 – Sinagoga
de Amsterdã.
- Hoje a Holanda é para nós o que foi a Itália em 1400 – disse o rabino. Minha família fugiu de Lisboa depois que meu pai foi condenado pela Inquisição. Foi absolvido, mas o perigo de ser “condenado à morte como “relapso” era grande demais.
- Os frades italianos deviam se envergonhar – disse o jesuíta. Se existia sodomia, jogo e luxúria, se as mulheres eram vaidosas e os homens adiavam o casamento, tudo era posto na conta dos judeus que emprestavam dinheiro. A ideia de que a Segunda Vinda deveria achar os judeus convertidos é ridícula.
- A Peste Negra foi uma calamidade para os judeus, era preciso achar uma causa. Os flagelantes queriam que se eliminasse os judeus para evitar a ira divina. Em 1336, na França, pessoas afligidas pela pobreza queimaram livros de contabilidade nos pogroms, camponeses, soldados endividados. Mesmo assim, no ínicio, o papa e outros cidadãos das cidades tentaram proteger-nos.
- A ideia de que crianças eram necessárias para rituais judaicos, de que judeus perfuravam a hóstia com pregos para provar que Cristo não estava ali, as infames “hóstias ensanguentadas”, de que todos os judeus são bruxos porque Salomão era um senhor dos demônios, tantas tontices e idolatrias não são dignas do homem racional. Algum maluco em Munique acusa os judeus de terem matado a criança encontrada no rio e todos eles são trancados em uma sinagoga e incendiados. O próprio papa inocentou os judeus! As redes de comércio mundial, além das rivalidades políticas locais, são o futuro: África, Império Otomano, Bordeaux e Veneza.
- Amsterdã nos possibilitou viver aos olhos do público. O pobre judeu convertido de Portugal vive seu judaísmo limitado temendo a morte: guarda o sábado com medo, não come porco com medo, joga fora a água de seus potes com medo.
- É claro que meu objetivo é o crédito ao rei, mas além disso amo o Velho Testamento. E também trata-se de justiça. Sabemos que os reis protegeram os judeus durante mil anos, mas depois a Espanha, a França e a Inglaterra os expulsou. Restou Veneza, Nápoles e os Estados papais, a Polônia e a Rússia. Ouvi dizer que o senhor quer negociar uma comunidade sefardita na Inglaterra...
- Sim, pretendo negociar com Lorde Cromwell. Quando o Messias voltar, vamos juntos recebê-lo.
INT – Casa de
praia
Os
dois sozinhos assistem desenhos na TV, bebem água, perseguem um
pernilongo.
Assistem
TV.
Corta
para EXT - O filho com a namorada num quiosque.
INT
– Casa de praia
Um
deles dorme ou finge dormir. Sua mão encosta na perna.
Corta
para EXT Dunas – a mãe retorna do mar.
Corta
para – INT – Rostos se aproximam.
Corta
para EXT Dunas - Amigo bonito para a mulher e oferece água de coco?
[o
que eu quero com isso? Conseguirei seguir adiante? São coisas tão
íntimas... O que importa é o toque da pele ao entregar o copo, o
raio de sol entre as árvores, a forma como a nuca se arrepia, quele
animal de patas finas na parede]
- Conhece o Sham? É
meu sobrinho.
David
estendeu a mão e sorriu, Sham olhou em seus olhos fazendo-o corar.
- Vamos
entrar.
O
café do cinema.
Aqui
está o roteiro - ou seja o que for – que meu tio estava
escrevendo.O que desapareceu?
É.
Foi antes ou depois de ter o texto censurado?
Depois. Mas não temos uma cópia final.
Ele...
Sumiu, sumiu apenas. Foi pra faculdade enão voltou mais. Meu avô tentou todas as autoridades que conhecia, nada.
A
noite bate nas janelas
O
vento e a lua na terra das lágrimas
A
voz nos mapas da mente
Nem
uma cação
nem
um poema depois que a humanidade se foi
/Os
brancos lençóis
ainda
aqui
o
sol da manhã pela janela
você
já saiu e eu
vou
em
direção à cidade sem horizontes
que
momento de paz
em
teus braços
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