Contos de (assustar) fadas
Afonso Junior Ferreira de Lima
Biblioteca Nacional
535801, em 03/08/2011
A
CAVEIRA
Era
uma vez um menino negro, que morava em um bairro distante da cidade. Havia
ainda pelo lugar muitas matas, onde ele gostava de brincar. Um dia, viu um
homem maltrapilho que levava um cachorro amarelo preso pelo pescoço com um
arame. O pobre animal chorava, tinha os olhos cheios de sangue, estava manco de
uma perna e, de tão magro, mostrava os ossos.
E gritava com ele:
- Bicho dos infernos, tua dona vai te dar uma
sova quando chegares, malevo fujão.
O
menino foi se escondendo atrás das árvores e ficou acompanhando o homem. Quando
o viu parar na beira de um riacho, para beber água, deixando o cão amarrado em
uma árvore, atirou umas pedras na direção oposta, e, vendo que o homem ia mais
adiante ver o que era, foi pé por pé até o animal e, sorrateiramente,
desamarrou-o, levando-o no colo. Escondeu-se novamente e observou o homem
esbravejar, furioso, lamentando-se pelo seu destino.
Chegando
a casa, disse ao pobre animal:
-
Pobrezinho, pele e osso. Quem será essa tua dona que tanto te maltrata.
-
É um ser diabólico, uma bruxa das Índias, disse o animal.
O
menino levou um susto e indagou:
-
Falas, amarelinho?
-
Sim, falo e ainda sei latim e matemática. Na
verdade sou um sábio árabe, fui escravizado por essa mulher nefasta. Ela não é
uma mulher como as outras, é apenas uma caveira que, de dia, por meio de
encantamentos, veste a pele de uma bela senhorita de olhos azuis, frios como o
gelo, e uma pela macia de mármore. Os homens se apaixonam por ela e ela os
prende nas galerias no subsolo de sua mansão, que é no meio do mato. Ela lhes
deu uma poção que lhes dá uma vida muito longa, mas apenas pelo prazer de
vê-los passar fome e sede. Ela me espanca quase diariamente, mas o pior é o que
faz aos seus empregados. Todo dia corta um bebe o sangue deles para que fique
mais viva. Dizem que era uma bela princesa indiana que, de tão bela, recusou
todos os pretendentes, até que um mago lançou-lhe uma maldição - nunca poderia
ser enterrada como as outras caveiras e deveria buscar pretendentes até
encontrar um que lhe amasse no aspecto real, ou seja, como ossos.
-
Que coisa horrível, e não há forma de
combatê-la?
-
Sim, há. À noite não ficam criados na casa, e
quando bate meia noite, ela entra no subterrâneo e adormece sobre uma sepultura
de mármore. É preciso ir à noite às galerias e soltar os homens que estão nas
celas, mas o último homem é preciso deixar preso. Trata-se de um espião e quem
o soltar vai sofrer os reveses do destino. Além disso, é preciso roubar dela a
pele mágica e enquanto ela dorme, atirar sobre ela uma tocha incendiada. Assim
ela queimará e será libertada sua alma.
-
Eu irei, disse o menino, e o cão lhe fez
prometer que não ajudaria o último homem.
E também resolveu ir com ele e levar
três artefatos, caso fosse necessário, uma faca, uma corda e um fósforo.
Assim
fizeram e, pulando com cuidado o portão, esconderam-se no jardim em frente,
onde o mato selvagem crescera, esperando uma oportunidade de entrar no casarão.
Quando
as luzes apagaram, afinal, o menino acendeu uma vela, e entrou cuidadosamente.
-
Na sala tem um alçapão em baixo do tapete. Mas cuidado, não faça barulho, disse
o cão.
Quando
entrou no subterrâneo, teve um estremecimento. Era gélido e escuro. Passou
delicadamente pela figura que dormia sobre o mármore, avistou a pele sobre uma
pedra.
-
Ali está a escada que dá para as galerias. A
chave fica logo no último degrau.
Assim
o menino foi descendo e, com cuidado, abriu a primeira porta, de onde saiu um
homem barbudo, escuro, com roupas rasgadas e cheiro insuportável, que lhe
mostrou um anel de ouro no dedo.
-
Obrigado, menino. No passado eu fui um soldado
muito valente, e nos apaixonamos quando eu a vi dançar em um baile. Mas hoje,
veja minha triste situação.
E dizendo isso, o homem sentou-se calado na
beira da escada.
Da segunda porta saiu um homem loiro, de longas
barbas, com um casaco azul esfarrapado.
-
Obrigado menino. Eu era capitão de um navio e
nos apaixonamos quando ela foi ver minha chegada no porto. Eu era muito
estrépito e conhecia várias terras fabulosas, tendo vencido piratas e
descoberto tesouros, mas ela me transformou em um triste farrapo.
E, dizendo isso, juntou-se ao segundo.
Assim
uma por uma das portas foram abertas e delas saíram reis, magos, sacerdotes,
camponeses, escravos, poetas e ricos comerciantes, todos reduzidos a quase
nada.
Da última porta saiu um velho, magro e triste,
que disse:
-
Eu era um jovem feliz e saltitante. Gostava de
tratar bem os animais e alimentar os peixes do lago. Era amigo dos pombos e dos
cães. Um dia um sábio árabe descobriu que eu tinha o poder de falar com os
animais e me convenceu a ir até o castelo de uma bruxa indiana, uma mulher
amaldiçoada, sua inimiga, me prometendo um filtro da juventude eterna se eu a
matasse. Mas a mulher era poderosa demais, me prendeu e transformou o sábio
neste cão que vós levais.
-
Mentiroso - disse o cão.
- A decisão é vossa, disse o velho. Podes
deixar-me aqui se quiseres a morrer de fome e sede.
O menino decidiu levá-lo com os outros.
-
Ata pelo menos as mãos desse animal, para que,
se quiser nos atacar, não possa ir muito longe, disse o cão. Assim fez o
menino.
Foram
todos em fila, passando passo por passo perto da caveira, que dormia. O menino
pegou a pele e acendeu uma tocha da parede, pronto para jogar sobre o monstro.
Mas, ao aproximar-se, o velho deu um grito:
Desperta! - e a caveira levantou-se quase
matando o menino de susto. Em seguida lançou raios das mãos, matando os homens,
que viravam cinzas. O cachorro, entretanto, tomou a tocha da mão do menino e
lançou-se sobre ela, ambos prendendo fogo. O velho tentou atacar o menino com
um ferro, mesmo com as mãos atadas, mas este lhe enfiou a faca. Correu então até
a saída e pulou o portão e correu.
No meio do caminho, apareceu-lhe um fantasma
branco e enevoado como a cerração.
-
Obrigado, menino, disse o fantasma. Eu fui um
sábio que se apaixonou por essa princesa. Fazia todas as suas vontades e
cheguei a pedir que ela me levasse consigo para onde fosse. Foi então que ela
me transformou em cão e passou a judiar de mim todos os dias, já fazia mil
anos. Agora volto para seguir meu caminho.
E, dizendo isso, desapareceu. O menino continuou a
correr, e não parou até voltar à sua casa.
AJR
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