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sábado, julho 06, 2019

Contos de (assustar) fadas - infantil - 2

Contos de (assustar) fadas

Afonso Junior Ferreira de Lima


Biblioteca Nacional
535801, em 03/08/2011

A GARÇA

Ele morava em uma terra que fora de um grande Barão. Era um terreno que começava com um barranco, por onde entravam todos, cheio de lixo. As ruas eram lama, fios de esgoto com todo tipo de sujeira. Seu irmão havia se envolvido com gente má e fora encontrado morto. Sua mãe morrera de tristeza. Ele tentara por algum tempo cuidar do pai e ficara no barraco que haviam construído, do qual se podia ver o lado de fora pelas frestas entre as tabuas. 
Mas o homem, caindo no alcoolismo, acabara por enlouquecer, morando na rua. Então o menino decidiu sair mundo afora e desceu o caminho que dava para a mata, pensando em chegar até o Lago Guaíba, que o povo chamada de “rio”, quem sabe lá do outro lado haveria uma vida melhor. A única coisa que levava consigo era uma faca de prata, um tesouro que escondiam muito bem e fora de seu bisavó, que lutara em revolução.
O entardecer era magnífico, rosa forte e laranja, e se via todo o verde dos morros da cidade. Dormiu na mata a primeira noite, e, por sorte, achou o que comer em uma laranjeira ali perto.
Ao amanhecer, um homem velho estava na estrada, com um cão imenso, branco, com o corpo tomado por manchas de sarda.
-          Pobre cão, por que está tão doente? O senhor devia dar banho nele!
-          Eu não, disse o homem - já tentei de todo jeito fazer curar esse bicho, mas é ruim que só vendo.
-          Até mesmo a morte seria melhor, veja como sua pele está vermelha e como sente coceira. Está sofrendo muito com tanta comichão.
-          Para isso teria de ter um revólver. E não tenho revólver aqui.
-          Então, quem sabe, o senhor me dá esse animal. Vou levá-lo até o rio e matá-lo.
-          Fique com ele. Seja feliz. – e desapareceu na estrada.

O cão olhou quase triste para o menino, que teve pena.
-          Pobre amigo. Não tenho remédios para te curar, mas venha comigo.


Andaram muito pelo caminho, e chegaram, enfim, até a beira do Lago. Dali se enxergava uma enorme baía, e o menino ficou contente de respirar um ar diferente, que nunca havia sentido. Sentou na areia e ficou olhando a água.
-          O que você faz aqui? - disse uma voz.
-          Quem esta falando?
Ele olhou por todos os lados e não pode acha ninguém.
-     Sou eu. A garça branca.
-          Garça! Você fala?
-          Sim, não sou uma garça como as outras... mas me responda, o que fazes aqui?
-          Eu e esse cão estamos sozinhos e não temos nem o que comer. Pensei se do outro lado do rio não poderíamos ter mais sorte.
-          Bem, atravessar esse lago é perigoso. Se você tentar nadar, vai se afogar.  Além do mais, a água é muito suja. Mas faça o seguinte: espere o pôr-do-sol, e eu falarei com minhas amigas. Duas de nós levaremos você e duas o seu amigo cão.
O cão mexeu o rabo todo faceiro.
Assim ele esperou pacientemente. Quando o sol baixou, quatro garças brancas vieram e fizeram com que voassem até as ilhas do lago.
- Aqui é nosso Arquipélago. Quase ninguém vêm a essas ilhas, e aqui e tão escondido pelo mangue que ninguém pode nos ver. E, dizendo isso, as garças desceram em um pequeno Forte abandonado, onde estavam reunidas muitas outras da sua espécie.
            Dentro da Fortaleza havia um rico mobiliário antigo, com tapeçarias, mesas douradas, quadros e até mesmo peças de porcelana e cortinas. As garças colocaram sobre  a mesa peixes variados, colhidos pelas ilhas longínquas onde iam, e o menino acendeu o fogo na lareira para prepará-los. Serviu-se muito bem e ao seu amigo cão e depois deitou-se num amplo divã.  Dormiu um pouco. Ao acordar, ouviu uma garça dizer:
-          Na verdade eu não sou uma garça, disse ela. Sou a filha do Barão, que foi dono de toda a extensão de terra daqui até o lugar onde você mora. Meu pai tinha muitos escravos, que roubaram um baú de ouro e fugiram para dentro das ilhas, formando um quilombo. Meu pai, que era um homem muito raivoso, decidiu persegui-los e acabou incendiando o quilombo, mas uma ninfa das águas, que estava observando, lançou uma maldição sobre meu pai. Eu me transformei em garça, assim como todos os homens que iriam morrer. Infelizmente, só eu posso falar, de modo que niguém mais sabe onde pode estar o tesouro. Por isso ele construiu um Forte nesse lugar e o mobiliou com o bom e o melhor.
-          E não há como desfazer a maldição?
-          Há sim. A ninfa disse que se fosse achado o baú de ouro, poderíamos voltar à forma humana.
-          E onde estaria esse baú?
-          Esse é o perigo. O baú está guardado por uma serpente terrível, muito maior que as outras, que anda com o peito reto como um humano, cujos olhos parecem fogo e leva na cabeça uma crista como a de um galo - e que já matou todos quantos tentaram se aproximar do tesouro. Seu olhar transforma em pedra tudo quanto se aproxima dela.
-          Não tenho escolha. Tenho comigo uma velha faca. Devo ir. Andarei pelo Arquipélago procurando a tal cobra.
-          Espere - disse a garça - leve esse espelho. Quando se aproximar do animal, nunca o olhe de frente, mas pelo reflexo.

O menino foi-se mangue adentro, com o seu fiel amigo cão, que sofria horrivelmente pela coceira da sarna. Ele observava a natureza, o céu azul, e pensava que tinha sofrido bastante em sua vida. Mas havia outras pessoas que também haviam sofrido. O mundo era realmente misterioso e era preciso abandonar velhos pensamentos como roupas que não servem ais, quando a gente cresce. O cão olhava para ele como se tivesse entendido seus pensamentos e parecia sorrir. É, amigo, não podemos desistir, parecia dizer.
De repente, aparece uma mulher desgrenhada, com um olhar terrível e uma foice nas mãos.
-          Que querem por aqui?
-          Eu estou a procura da Cobra Grande, e quero matá-la
A velha deu um sorriso maldoso.
-          Grande heróis aqui já morreram. Venham comigo à minha casa e lhes darei um veneno tão terrível quanto o da cobra.
O menino ficou receoso, mas decidiu acompanhar a mulher. Chegou a uma cabana imunda. Vidros estavam pendurados nas àrvores ao redor, contendo líquidos esquisitos e também bonecas de porcelana, sem cabeça, horripilantes.
-          Venham, venham, aqui está o veneno.
Dentro havia um caldeirão com um cheiro insuportável. Mal o menino se aproximou a velha pegou um longo bastão e deu três bordoadas em sua cabeça fazendo com que caísse no chão desmaiado. O cão fugiu correndo.
A velha amarrou o menino em um buraco fundo no chão. Quando acordou sentiu o cheiro úmido da terra, e suas mãos doloridas colocadas para trás. Na boca tinha algo amargo, talvez pingado ali para ficar mais sonolento.
- Para minhas poções preciso de sangue novo. Vou realizar sangrias em você.
Assim o jovem acabou dormindo, com muitas dores.
Sonhou que os homens do Quilombo, dançando, lhe mostravam onde estava o tesouro, bem abaixo do caldeirão da mulher.
A velha, enquanto o lago se tornava azulado e os pássaros gritavam um novo dia, havia tirado o garoto do buraco, aproveitando-se de sua fraqueza, e o pendurado por sobre o caldeirão em uma vara. Preparava-se para cortar seu punho com um punhal.
-          Não! - gritou o garoto quando percebeu sua situação. Que mal eu fiz a você?
Mas a velha, com um sorriso malvado, levantou a arma alegremente.
Nisso, ouviu-se um barulho assustador e a terra tremeu. Era como o rolar de um grande rio, um sibilar assustador que punha tudo a balançar. E eis que a velha grita, apavorada
-          O Basileu! O Basileu!
E, dizendo isso, começa a esverdear, com seus ossos tornando-se visíveis porque da cor de chumbo,  enquanto sua pele ia acizentando em um espetáculo horrendo. O menino, mais que depressa, fecha os olhos e fica imóvel, esperando que o ser medonho acabe por achar que está morto.

A terra continua a tremer ao redor do caldeirão, o fogo tornando-se cada vez mais intenso e o menino fazendo força para conter sua curiosidade e manter os olhos cerrados. Subitamente, um barulho de vidro se quebrando, um grito monstruoso, a Serpente parece contorcer-se, o menino abre um olho: é a serpente que geme e se retorce à beira da morte. O cão havia atirado o frasco sobre ele sem olhá-lo de frente. 
As garças vieram voando e viram a morte do terrível inimigo, soltando em seguida o menino. Este, logo se refez, derrubou o imundo coquetel do caldeirão e, apagando o fogo, cavou sob o local. Abriu em seguida o baú e, no mesmo momento, aparecereu a ninfa das águas.
-          Você acabou de encontrar o que ninguém ousou. Agora esses seres podem voltar à vida humana.
E ao dizer isso as garças tornaram-se pessoas de novo, e a linda filha do Barão caiu aos pés do menino agradecendo-lhe.
-          E a esse bravo cão eu concedo o direito de se tornar homem e ter suas chagas curadas, para que viva feliz ao lado da filha do Barão – diz a ninfa.
Assim o pobre cão torna-se um belo jovem.
-          E você, menino, agora pode viver e ajudar seu velho pai. Derrame sobre ele o conteúdo desse frasco. É uma essência do esquecimento, e ela apagara todos os dias infelizes. Mas cuidado, se colocar demais, ele perderá até mesmo sua própria identidade. Depois disso, volte para cá e eu lhe ajudarei a arranjar uma bela casa para vocês, com o tesouro do Barão.

Assim foi feito - o menino curou seu pai, e viveram felizes em uma bela casa à margem do Lago.   

AJR

Parte 1

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