Contos de (assustar) fadas
Afonso Junior Ferreira de Lima
Biblioteca Nacional
535801, em 03/08/2011
Parte 1
A GARÇA
Ele morava em uma terra que fora de um grande Barão. Era
um terreno que começava com um barranco, por onde entravam todos, cheio de
lixo. As ruas eram lama, fios de esgoto com todo tipo de sujeira. Seu irmão
havia se envolvido com gente má e fora encontrado morto. Sua mãe morrera de
tristeza. Ele tentara por algum tempo cuidar do pai e ficara no barraco que
haviam construído, do qual se podia ver o lado de fora pelas frestas entre as
tabuas.
Mas o homem, caindo no alcoolismo, acabara por
enlouquecer, morando na rua. Então o menino decidiu sair mundo afora e desceu o
caminho que dava para a mata, pensando em chegar até o Lago Guaíba, que o povo
chamada de “rio”, quem sabe lá do outro lado haveria uma vida melhor. A única
coisa que levava consigo era uma faca de prata, um tesouro que escondiam muito
bem e fora de seu bisavó, que lutara em revolução.
O entardecer era magnífico, rosa forte e laranja, e se
via todo o verde dos morros da cidade. Dormiu na mata a primeira noite, e, por
sorte, achou o que comer em uma laranjeira ali perto.
Ao amanhecer, um homem velho estava na estrada, com um
cão imenso, branco, com o corpo tomado por manchas de sarda.
-
Pobre
cão, por que está tão doente? O senhor devia dar banho nele!
-
Eu não,
disse o homem - já tentei de todo jeito fazer curar esse bicho, mas é ruim que
só vendo.
-
Até mesmo
a morte seria melhor, veja como sua pele está vermelha e como sente coceira.
Está sofrendo muito com tanta comichão.
-
Para isso
teria de ter um revólver. E não tenho revólver aqui.
-
Então,
quem sabe, o senhor me dá esse animal. Vou levá-lo até o rio e matá-lo.
-
Fique com
ele. Seja feliz. – e desapareceu na estrada.
O cão olhou quase triste para o menino, que teve pena.
-
Pobre
amigo. Não tenho remédios para te curar, mas venha comigo.
Andaram muito pelo caminho, e chegaram, enfim, até a
beira do Lago. Dali se enxergava uma enorme baía, e o menino ficou contente de
respirar um ar diferente, que nunca havia sentido. Sentou na areia e ficou olhando
a água.
-
O que
você faz aqui? - disse uma voz.
-
Quem esta
falando?
Ele olhou por todos os lados e não pode acha ninguém.
- Sou eu. A
garça branca.
-
Garça!
Você fala?
-
Sim, não
sou uma garça como as outras... mas me responda, o que fazes aqui?
-
Eu e esse
cão estamos sozinhos e não temos nem o que comer. Pensei se do outro lado do
rio não poderíamos ter mais sorte.
-
Bem,
atravessar esse lago é perigoso. Se você tentar nadar, vai se afogar. Além do mais, a água é muito suja. Mas faça o
seguinte: espere o pôr-do-sol, e eu falarei com minhas amigas. Duas de nós
levaremos você e duas o seu amigo cão.
O cão mexeu o rabo todo faceiro.
Assim ele esperou pacientemente. Quando o sol baixou,
quatro garças brancas vieram e fizeram com que voassem até as ilhas do lago.
- Aqui é nosso Arquipélago. Quase ninguém vêm a essas
ilhas, e aqui e tão escondido pelo mangue que ninguém pode nos ver. E, dizendo
isso, as garças desceram em um pequeno Forte abandonado, onde estavam reunidas
muitas outras da sua espécie.
Dentro
da Fortaleza havia um rico mobiliário antigo, com tapeçarias, mesas douradas,
quadros e até mesmo peças de porcelana e cortinas. As garças colocaram
sobre a mesa peixes variados, colhidos
pelas ilhas longínquas onde iam, e o menino acendeu o fogo na lareira para
prepará-los. Serviu-se muito bem e ao seu amigo cão e depois deitou-se num
amplo divã. Dormiu um pouco. Ao acordar,
ouviu uma garça dizer:
-
Na
verdade eu não sou uma garça, disse ela. Sou a filha do Barão, que foi dono de
toda a extensão de terra daqui até o lugar onde você mora. Meu pai tinha muitos
escravos, que roubaram um baú de ouro e fugiram para dentro das ilhas, formando
um quilombo. Meu pai, que era um homem muito raivoso, decidiu persegui-los e
acabou incendiando o quilombo, mas uma ninfa das águas, que estava observando,
lançou uma maldição sobre meu pai. Eu me transformei em garça, assim como todos
os homens que iriam morrer. Infelizmente, só eu posso falar, de modo que niguém
mais sabe onde pode estar o tesouro. Por isso ele construiu um Forte nesse
lugar e o mobiliou com o bom e o melhor.
-
E não há
como desfazer a maldição?
-
Há sim. A
ninfa disse que se fosse achado o baú de ouro, poderíamos voltar à forma
humana.
-
E onde
estaria esse baú?
-
Esse é o
perigo. O baú está guardado por uma serpente terrível, muito maior que as
outras, que anda com o peito reto como um humano, cujos olhos parecem fogo e
leva na cabeça uma crista como a de um galo - e que já matou todos quantos
tentaram se aproximar do tesouro. Seu olhar transforma em pedra tudo quanto se
aproxima dela.
-
Não tenho
escolha. Tenho comigo uma velha faca. Devo ir. Andarei pelo Arquipélago
procurando a tal cobra.
-
Espere -
disse a garça - leve esse espelho. Quando se aproximar do animal, nunca o olhe
de frente, mas pelo reflexo.
O menino foi-se mangue adentro, com o seu fiel amigo cão,
que sofria horrivelmente pela coceira da sarna. Ele observava a natureza, o céu
azul, e pensava que tinha sofrido bastante em sua vida. Mas havia outras
pessoas que também haviam sofrido. O mundo era realmente misterioso e era
preciso abandonar velhos pensamentos como roupas que não servem ais, quando a
gente cresce. O cão olhava para ele como se tivesse entendido seus pensamentos
e parecia sorrir. É, amigo, não podemos desistir, parecia dizer.
De repente, aparece uma mulher desgrenhada, com um olhar
terrível e uma foice nas mãos.
-
Que
querem por aqui?
-
Eu estou
a procura da Cobra Grande, e quero matá-la
A velha deu um sorriso maldoso.
-
Grande
heróis aqui já morreram. Venham comigo à minha casa e lhes darei um veneno tão
terrível quanto o da cobra.
O menino ficou receoso, mas decidiu acompanhar a mulher.
Chegou a uma cabana imunda. Vidros estavam pendurados nas àrvores ao redor,
contendo líquidos esquisitos e também bonecas de porcelana, sem cabeça, horripilantes.
-
Venham,
venham, aqui está o veneno.
Dentro havia um caldeirão com um cheiro insuportável. Mal
o menino se aproximou a velha pegou um longo bastão e deu três bordoadas em sua
cabeça fazendo com que caísse no chão desmaiado. O cão fugiu correndo.
A velha amarrou o menino em um buraco fundo no chão.
Quando acordou sentiu o cheiro úmido da terra, e suas mãos doloridas colocadas
para trás. Na boca tinha algo amargo, talvez pingado ali para ficar mais
sonolento.
- Para minhas poções preciso de sangue novo. Vou realizar
sangrias em você.
Assim o jovem acabou dormindo, com muitas dores.
Sonhou que os homens do Quilombo, dançando, lhe mostravam
onde estava o tesouro, bem abaixo do caldeirão da mulher.
A velha, enquanto o lago se tornava azulado e os pássaros
gritavam um novo dia, havia tirado o garoto do buraco, aproveitando-se de sua
fraqueza, e o pendurado por sobre o caldeirão em uma vara. Preparava-se para
cortar seu punho com um punhal.
-
Não! -
gritou o garoto quando percebeu sua situação. Que mal eu fiz a você?
Mas a velha, com um sorriso malvado, levantou a arma
alegremente.
Nisso, ouviu-se um barulho assustador e a terra tremeu.
Era como o rolar de um grande rio, um sibilar assustador que punha tudo a
balançar. E eis que a velha grita, apavorada
-
O
Basileu! O Basileu!
E, dizendo isso, começa a esverdear, com seus ossos
tornando-se visíveis porque da cor de chumbo,
enquanto sua pele ia acizentando em um espetáculo horrendo. O menino,
mais que depressa, fecha os olhos e fica imóvel, esperando que o ser medonho
acabe por achar que está morto.
A terra continua a tremer ao redor do caldeirão, o fogo
tornando-se cada vez mais intenso e o menino fazendo força para conter sua
curiosidade e manter os olhos cerrados. Subitamente, um barulho de vidro se quebrando,
um grito monstruoso, a Serpente parece contorcer-se, o menino abre um olho: é a
serpente que geme e se retorce à beira da morte. O cão havia atirado o frasco
sobre ele sem olhá-lo de frente.
As garças vieram voando e viram a morte do terrível inimigo,
soltando em seguida o menino. Este, logo se refez, derrubou o imundo coquetel
do caldeirão e, apagando o fogo, cavou sob o local. Abriu em seguida o baú e,
no mesmo momento, aparecereu a ninfa das águas.
-
Você
acabou de encontrar o que ninguém ousou. Agora esses seres podem voltar à vida
humana.
E ao dizer isso as garças tornaram-se pessoas de novo, e
a linda filha do Barão caiu aos pés do menino agradecendo-lhe.
-
E a esse
bravo cão eu concedo o direito de se tornar homem e ter suas chagas curadas, para
que viva feliz ao lado da filha do Barão – diz a ninfa.
Assim o pobre cão torna-se um belo jovem.
-
E você,
menino, agora pode viver e ajudar seu velho pai. Derrame sobre ele o conteúdo
desse frasco. É uma essência do esquecimento, e ela apagara todos os dias
infelizes. Mas cuidado, se colocar demais, ele perderá até mesmo sua própria
identidade. Depois disso, volte para cá e eu lhe ajudarei a arranjar uma bela
casa para vocês, com o tesouro do Barão.
Assim foi
feito - o menino curou seu pai, e viveram felizes em uma bela casa à margem do
Lago.
AJR
Parte 1
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