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terça-feira, junho 30, 2020

As fotos

Os militares na TV anunciam que o chefe do Sistema Regional de Investimento seria um membro do império. Nunca haviam desmerecido assim o país.
O homem no banco ao seu lado diz:
- Eu me lembro quando a televisão era política. O povo era manipulado. Por isso votei neles.

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- Ele descobriu algo sobre vocês?
- Nosso processo estava parado na Justiça. Estavam incriminando a igreja por comprar tempo na televisão. Esse cara começou a fazer perguntas sobre o juiz, sobre contratos com nossos amigos. Ligamos para a concorrente.

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Ela observava as mulheres do restaurante, alguma coisa lhe chamava a atenção, um olhar vítreo ou eufórico, uma espécie de droga.
- Eu não vou pagar por isso, disse sua amiga.
Bem, não era sua amiga de verdade.
- O prato?, perguntou distraída.
- Onde você está? Estou falando que não podemos abrir mão de tudo em nome da pretensa justiça social.
O pior de ser uma investigadora encoberta era ter de aturar essa gente. Ela sorriu e concordou.

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Palitó escuro, maleta preta, calça social, barba. Aprendera esses truques quando começara a estudar a colonização de planetas vizinhos.
O reconhecimento facial não detectou sua máscara. As portas se abriam com facilidade. Depositou no cofre suas memórias.

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"A ideia foi isolar todas as formas de contato não padronizável. Seu vizinho, seu parente, seu chefe vai vigiar até que ponto seu resultado é o previsto e desejável. Quando você achar que é original, pense no bloco de ideias que foi dado a você". 

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As instalações do Projeto eram muito distantes, era preciso atravessar o deserto de trem. Ela queria rever as publicações do jornalista, se resignou a ler um romance policial para ajudar na camuflagem. Na cabine, seu companheiro era um jovem sorridente, mas teve de derrubá-lo quando sentiu sua garganta pressionada na madrugada.

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- O trabalho não vale mais nada, a riqueza que realmente cresce é a improdutiva. Assim, temos massas que não são nada. Os shows de horror surgiram quando descobrimos que haviam jovens interessados em viajar à outros planetas para assistir pessoas serem devoradas por monstros alienígenas. 

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- Foi assim que aconteceu, disse sua fonte. Houve o acidente nuclear. Depois, começou a guerra ao terror. No começo, eram contra dar as previsões dos cidadãos, ou como disse um político, ler as mentes das massas, mas nada disso resistiu ao impacto do pânico. Era muita tentação e as empresas nunca foram impedidas, ao contrário. A Inteligência impediu que a lei chegasse à essas empresas. 

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Assim começou.
Na gravação, um galpão abandonado. Os agentes tinham de ver todos os movimentos de seis pessoas num período de 72 horas. Por sorte, cada um deles tinha microfones em todas as suas roupas como forma de segurança. Foi quando ela percebeu. 

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O ministro da Justiça estava envolvido. Seu livro teria a entrevista na íntegra. A rebelião jurídica servira como cortina de fumaça na campanha presidencial. Mas, como sentia o perigo, começou a resumir a história nos fragmentos que chamava de memórias.

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- Precisávamos de silêncio. Os trabalhadores se organizavam, criavam problemas. Depois, por vinte anos, moldamos o experimento social de ganhar com o corpo daquelas mulheres, dos dependentes, dos jogadores. Nós os queimamos. Assim acabaram os que queriam mudanças. A cidade perdeu seu brilho. Eu comecei a perceber que tudo parecia mais uma ruína, a verdade é que faltava alguma coisa. 

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O trabalho compulsório não estava descartado. Os pastores e os jornalistas anunciavam o Apocalipse. Ela pensava enquanto relia seu relatório: todos tinham os mesmos objetivos. 

Era preciso apenas juntar essas fotos, fotos que eram tão diversas, mesmo sabendo que não encaixariam, que dúvidas sempe estariam ali. Havia a lei, afinal. 

Briga entre clãs aparentados. Os potenciais haviam esvaziado as estantes da Justiça e lotado as prisões. 

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"Já foi sonhada, prevista. Sua vida. Eles cultivam seu hospedeiro evitando qualquer coisa de novo. Você foi produzido com slogans sobre liberdade e não culpar os outros, trabalho duro e ambição. Você é um ser social, assim não tem opção senão conectar-se com o mundo e aceitar as regras". 

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Tirando fotos na parada quase obrigatória no meio do nada. Pensava que deveria escrever algo, que deveria juntar esses fragmentos de forma a parecerem coerentes. Ela viu um militar espionando os passageiros.
O império havia participado da campanha. Agora, o presidente assinava acordos comerciais sem ler.

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"O que é preciso para acabar com uma pessoa? Acabar com sua humanidade. A televisão começou uma caçada contra ele. Não podia mais sair na rua sem disfarse. Um criminoso potencial."

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"A questão é que eles sabem toda a forma de rebelião que surge. As respostas são dadas antes que as perguntas possam ser pensadas".

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- O tribunal não cumpriu a lei. Os espiões novamente controlam sua liberdade. Os antigos criaram esse sistema de informação. Eles acharam a linguagem para vender suas ideias-produtos, tornaram todas as respostas produtivas para si mesmos: não mudanças em escala pela planificação, mas individualismo; não reconhecimento pelas conquistas das lutas, mas ressentimento de um consumismo frustrado; não exploração que destrói as relações humanas, mas destruição da família tradicional; não segurança, mas vigilância e armas para todos. O Comando devia ser obrigado a relatar - disse uma fonte. 

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O Comando avisa que nenhum dado foi preservado. Os crimes foram apagados depois da tempestade de raios de 1993. O sistema de elementos potenciais foi planejado para evitar falhas como essa.

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Ela entra no galpão abandonado. Um monte de cinzas e ossos.


Afonso Lima







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