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quarta-feira, novembro 24, 2021

Como fazer um Tchekhov

Como todo grande escritor Tchekhov é sempre atual. Portanto, depende do presente o "Tchekhov correto", pois o que causa máximo efeito no mundo de Stanislavski não será o mesmo no nosso mundo. Ao mesmo tempo, como médico, o escritor é o gênio da objetividade, deixa as respostas ao processo longo do leitor. 

Então, dialogando com o filme A Gaivota, dirigido por Michael Mayer, de 2018, gostaria de falar do Tchekhov "correto" - ou que me parece interessante. As primeiras frases da peça são já tão profundas que não poderiam ser de modo algum psicologizadas, porque não há como dizer "Estou de luto pela minha vida" de forma natural. (Professora Elena Vássina nos conta que é uma citação de Guy de Maupassant - de suas anotações em "Sobre a Água").

Então, parece-me que o caminho da expressão é o pior possível. É preciso aceitar a incomunicabilidade essencial desses personagens, personagens tão opacos e mutantes, pois é isso que dará margem à interpretação infinita. É preciso esquecer a vontade e os sentimentos. 

Essa é a peça de um contista; ela poderia ser apenas "monólogos da lua", descrições de paisagens do imaginário. Não precisa dessa ficção que se convencionou chamar "eu" (o hábito que Beckett vê desmontado por Proust). 

O filme traz um pouco de lágrimas. A lágrima é o drama, é conflito. É uma tentativa de prender Tchekhov no realismo inglês. Você chora quando sabe quem é, quando pensa que sofreu uma injustiça, ou quer alguém que se foi. Eles não sabem quem são. (Nina: "Mereço que me matem... Sou uma gaivota... Não, não é isto.") Ele não irá pintar uma rosa, mas perguntar-se o que é uma rosa - nesse sentido é modernista. Tal é o desafio de não entender, tão necessário. 

Para nós, é muito difícil imaginar o que significa a falta completa de esperança (talvez porque nosso sistema venda a esperança em cada frasco de desodorante). A sociedade de Tchekhov está parada, nada acontece, nada pode acontecer, volta sempre ao mesmo ponto (os servos estão livres e segue esse terror). A intelligentsia como um fruto (aparentemente) inútil na árvore do totalitarismo. Seus personagens não vão a lugar nenhum, a estrutura muda para não mudar. Nenhuma ação é possível. (É que o tempo da arte é muito longo). São peças sobre a frustração e o egoísmo.

Mas também sobre arte. Sobre o que deve ser o teatro. Até mesmo na Sibéria esses personagens assistem teatro (um teatro provavelmente feito de gestos herdados e poses exteriores). As projeções do autor - como dois escritores, como duas atrizes, como médico, etc. - são universos aos quais se deve descobrir, são objetos colocados para nossa análise científica. Nesse ponto lembra Rumo à Damasco. É o puro abstrato (como viu Meyerhold) e a máscara. 

Há, portanto, duas formas que parecem simplificar esses universos: uma é a exposição de sua superfície, outra é o aprofundamento dramático. 

Já vi atrizes gritando como se pudessem entregar uma mulher vaidosa expondo sua vaidade. Parece-me que é justamento o oposto. A face oculta da lua fará com que se veja o todo. É preciso ver Treplev não apenas como um garoto mimado e romântico, mas como (a máscara de) um jovem maduro e seco, em quem o público deve se ver. Da mesma forma, Trigorin é menos interessante como um apaixonado tolo, do que como um vaidoso incapaz de ver os outros. Arkadina é pior como mãe e atriz atormentada do que como A Arte, brilhante e fria, capaz de viver de e para si mesma.

A superfície do mar é agitada, mas o fundo se move devagar. Porque esses personagens não são apenas indivíduos que têm sentimentos - a máscara - mas são sentimentos. E como se interpreta um sentimento? A única forma de interpretar um sentimento é "executando-o", como a única forma de interpretar uma melodia o é; é preciso assumir que são filhos do darwinismo, perderam todas as referências que a tradição lhes dera, interpretá-los como se fossem mesmo maquinas.

A outra forma é dar um sentido à tudo. É claro que, dadas as expectativas que o cinema cria, de que haja "pessoas reais", de que haja conflitos como os nossos..., qualquer filme vai sofrer muito para poder nos deixar no estado de suspensão que o texto propõe. Não são textos que nos dizem que a vida não vale a pena - já que o autor parecia ter uma vida cheia de entretenimentos e amizades - mas que perguntam sempre pelo sentido, pelo sentido depois de tantas descobertas, e criam um espaço no tempo para que nós tenhamos esse vácuo. 

O mundo é como esse lago, inconstante e fugaz (a palavra "lago" aparece vinte vezes no texto). Dostoiévski vai mudar nossa vida, mas também nos deixar num estado de tensão talvez incompatível com a dura banalidade do cotidiano. Dostoiévski percebeu Auschwitz, mas Tchekhov percebeu a fila de banco. Essa é a comédia. Tchekhov está mais próximo de Beckett - sua resposta é a ironia. 

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Afonso Junior 



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