- Tudo bem?
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Boa pergunta.
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(rindo) Um estilo punk?
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Punk zen. (risos)
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Vamos começar pelos seus livros queridos.
-
Sim. Um deles tinha capa verde, lembro bem, enorme, capa dura.
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Verde como?
-
Acho que as coisas mais importantes a dizer sobre os velhos livros...
É sobre o prazer intenso, sobre a transformação que provocam. Em
certo momento, talvez os escritores perceberam que tudo era
unificador, universalizante, eram os sistemas científicos
positivistas, o poder absoluto dos reis e depois das corporações,
etc. Proust para mim pode ser o surgimento do particular, e, ao mesmo
tempo, do fluxo. Esse projeto moderno imagina também o que agora o
por que agora: o que pode ser literatura quando tudo tem uma
utilidade, quando a linguagem se empobreceu e estagnou... Os
Shakespeare, velhos, vermelhos, me mostraram a deliciosa terra da
imaginação. Os russos, amarronzados, lembrando uma tradição
secular, mostravam um mundo injusto, um sentido ético, uma
consciência sobre os sentimentos e hábitos, que é o que nos falta.
Só Clarice era luz pura, puro enraizar-se, pura terra úmida,
delicada retirada da pele, novinha em folha. Woolf... não lembro.
Talvez porque eu seja Woolf.
-
Algumas pessoas acham pedante falar desses livros hoje.
-
É porque nossa elite se fechou sobre si mesma. O projeto de que nada
será de graça, de que vencem as raças superiores, de que aqueles
que não tem transporte, nem saúde, nem habitação, merecem isso
porque seu trabalho não têm mesmo valor... esse projeto é
contrário ao literário, para quem a moça nordestina com olhar
perdido, uma flor, uma rua, tudo é parte de uma sinfonia brilhante e
fala. Para excluir constantemente os "diferentes"
precisamos de uma polícia forte e de pessoas sem identidade, sem
reflexão.
– Na
adolescência, a biblioteca de sua casa tinha o quê?
-
Eu não li muito. Minha mãe trabalhou como funcionária pública,
bem na era em que tudo que é público é visto como "obstáculo
à competição". O que é competitivo é sempre estrangeiro e
não importa se as pessoas ficarão sem emprego, como no Iraque. Mas,
retomando... Havia 100 mil livros na biblioteca do banco federal.
Depois, para evitar gastos, foi fechada. Adorava caminhar pelos
livros e a madeira antiga. Eu, no fundo, era um adolescente
solitário, sem muitos amigos de verdade, só que tive oportunidade
de mergulhar em oceanos anteriores à tudo, conversar com esses
fantasmas sinceros.
-
Ainda hoje?
-
Você sabe como é São Paulo. É preciso dizer não. De repente você
está numa multidão, cercado de prédios decadentes, ou caminhar até
o centro num domingo parece passar por um campo de refugiados. Minha
imagem de mim mesmo é caminhando, cruzando a cidade, um parque, um
campo. E, lutar muito para criar o mapa, com o recolhimento.
-
Mas quais...
– Acho
que disse isso em outro lugar. Grandes, clássicos, fortes. Se
ficamos apenas no jogo exterior, no corpo, nas ações de comer e
pegar comida, algo se desfaz. Por que será que, de tempos em tempos,
os gregos tinham que por uma máscara, sair das regras sociais, falar
com a voz dos outros, acreditar que eram transpassados por vozes e
energias do cosmos? A transformação revitaliza a sociedade. Muda
as formas de pensar. O mais importante foi a imensa luz na torre,
Sodoma, Ana Karenina, o crime da machadinha... Não muito mais. Pelo
menos nesse intervalo entre ser reprovado no vestibular e tentar de
novo. Mas voltando ao início... Lembro que eu tinha quatorze, estava
num hotel perto de uma famosa cascata em Gramado com minha avó. Eu
estava lendo a República, minha avó achava que eu era estranho.
-
A avó que você diz "aristocrática", fazendeira?
-
Digamos que sim. Para mim, era o lar, o cheiro de bolo (era doceira),
tinha medo. Herdeira. Da alma melancólica e pesada, digna, altiva.
Quando, adolescente, fui para Berlim... Berlim nessa época ainda não
era vista como um centro internacional de cultura ou cidade verde,
eu, pelo menos tinha a sensação de uma cidade em reflexão,
tentando entender o que significava a queda do muro, mesmo um tempo
depois. Descobri minha avó um pouco por lá. Estava no Aquarium e
encontrei uma senhora parecida com ela. O mesmo coração. Era uma
serenidade, uma máscara, mas perfeitamente funcional no mundo. Ouvi
na igreja Kaiser-Wilhelm um Monteverdi e lembrei dela também. Eu sou
muito mais esparramado, desatento, preguiçoso, mesmo ler precisa do
dia certo, em que o sangue dorme, sou pedra e lama; sua ordem e
disciplina, luz e força, carinho frio, um oposto complementar. Ela
entrou em depressão quando minha tia – uma amidade de quarenta
anos – quando ela morreu, anos depois. Sentada em um banco comigo
aguardando o corpo, pela primeira vez deixou rachar a superfície:
merda de vida, disse. São as pessoas que me conheceram de verdade.
-
Pesado, heim?
-
É a vida e tudo que fazemos dela. "Ela virou escrita",
como disse alguém.
-
E no entanto, você sempre reagiu a...
-
Gosto da visão grega antiga, onde tudo era mudança. A identidade
era importante no século XVIII para fugir da soberania do rei; para
que serve uma identidade hoje?
-
E o teatro...
-
Isso é o que Shakespeare pode fazer a uma pessoa. Quando você lê um
texto, não vai julgar como julga no mundo real: não podemos aceitar
tudo, mas no texto, sim, e os personagens mais demoníacos são
aqueles de quem mais gostamos. Escrevo teatro desde os quinze anos,
talvez não seja bom, mas escrevo. Quando cheguei em São Paulo...
pareceu-me que tudo é muito realista. Realismo quebrado, mas
realista. Eu fui indo para coisas narrativas em 2007, depois estados
da mente, foi natural, coisas que eu li, mapas da mente. As pessoas
diziam... nada agradava ...que não tinha conflito, não entendiam o
lugar, o enredo. Não gostavam, pensava, será que eu perdi a relevância, a
varinha de condão? Terrível. Mas depois, percebi que nada tinha a
ver comigo.
-
Essa é uma autoficção autobiográfica?
-
Sim, mas verdadeira.
-
Eu li uma crônica sua na qual contava sobre um mago que conheceu na
Inglaterra...
-
É verdade. Nos conhecemos um uma festa. Ele usava dreads vermelhos,
mas já tinha seus 50 anos. Uma capa de couro preto. Ele mal me viu e
falou que eu deveria ser astrólogo, dançarino, pintor ou
colecionador de antiguidades. Eu poderia mesmo ser qualquer dessas
coisas. Como eu conto no texto, atravessamos a cidade em meio a fog,
ele falando das mulheres que conquistou e conquistando algumas. Era
culto e herdeiro de uma indústria. Ele disse: "Você tem o
pensamento cósmico. Parece ter viajado o mundo". Fiquei com
isso na cabeça. Nunca tive propriamente a sensação de saber
perfeitamente para onde estava indo.
-
Seu trabalho já foi dito experimental e, paradoxalmente, classicista
e parnasiano. Como vê isso?
-
Eu andei namorando Borges, mas estaos na era do clichê, "o que
ninguém é é obrigado". Não tenho, nem deveria ter opinião à
respeito. Muito ocorreu no século XX, um arcaico que era o
contemporâneo. Dizem também que quando Leminski mostrou pela
primeira vez seu livro Catatau para os amigos eles disseram: você é
um bandido que sabe latim. Eu não sei, mas acho a frase ótima.
Veja, se você não tem dinheiro de berço, acaba sendo um
observador, luta por palavras estranhas, imcômodos, e tem que achar
seu jeito de ser, para não ser levado pelas modas. É o mundo do
estado de emergência, calamidade pública, como se disse. É a
tensão brasileira em ser totalmente marginal e rebelde e lutar por
uma herança que é e não é nossa.
-
Vamos falar do conto "Parmênides", onde você fala de
psicologia arquetípica.
-
Brinco, melhor dizer que eu brinco com. Da modernidade, herdamos uma
proposta estética que é "criar as regras pelas quais se cria",
ou seja, toda proposta é uma proposta de possiilidade da linguagem,
juntar de forma nova as velhas palavras revelando o olho que olha. A
teoria de Hillman é provavelmente fantástica e séria, mas pra mim
sempre teve um sentido de materializar e racionalizar o movimento
junguiano de questionar o positivismo. Não sei se Jung estava certo,
mas tem coisas incríveis no fato de você arriscar um salto na
metafísica. O que será a realidade? É preciso continuar buscando.
– Por
que escrever? Por que a arte?
–
Será que é porque é a única coisa
que não tem definição? A humanidade está morrendo por falta de
aparelho de pensar, de papa para pensar, de pensamentos de igualdade,
e por causa de mecanismos econômicos que podem mesmo acabar com a
natureza. Sabe, talvez o mergulho numa outra consciência ajude na
tolerância para diálogo: a incapacidade de entender outra lógica,
a autocomplacência com nossa suposta superioridade, nosso discurso
organizador, pode levar ajudar até no que pode ser a lei maior do
capitalismo doente, o darwinismo social, a competição histérica e
a exclusão do "fraco": a guerra para abrir
mercados pode vir de um sentimento: Eles eram uma raça inferior,
Eles não entendem a democracia, Eles gostam de empresas públicas
ineficientes e corruptas, Eles tinham medo que suas empresas
fracassassem diante da competição estrangeira, Vencem os melhores é
uma lei biológica.
-
Mas isso não seria do campo da filosofia? Você já foi acusado de
ser filosófico demais.
-
A escrita nada tem de pessoal. Ele, esse sujeito autor, pode ler
sobre filosofia do Renascimento e depois passar meses sem vontade de
nada, ou lendo romances policiais e vendo filmes. Por isso o trabalho
da criação não deve ser visto do ponto de vista comercial, como
tudo hoje em dia. A vida de um artista não segue aquela linha comum,
um crescendo em direção à carros, viagens e casa, mas pode parecer
ociosa até que um texto resume e significa tudo. Não é comum, mas
devia ser, talvez, fazer a biografia dos livros lidos, onde se viveu
de verdade. Vivemos
uma época de empobrecimento extremo do pensar, a ponto de ter de
reensinar a ler, pensar freia, e pegamos a primeira coisa que propõe
uma lógica, aceitamos os fundamentalismos midiáticos e religiosos
sem confronto. Chego a pensar que deveríamos afastar com rigor tudo
que nos afasta de uma construção subjetiva - porque é a única
riqueza perene, a raiz profunda.
(...)
Afonso Jr. Ferreira de Lima
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