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quinta-feira, abril 28, 2016

Macbeth na fumaça

A primeira vez que vi o filme de Justin Kurzel achei tudo razoável. Só me pareceu que ficávamos angustiados quando um longo texto era dado num contexto ultra realista. Recentemente, reli a peça e decidi rever o filme.
Por um lado, trata-se de um teatro da palavra, não realista, em que a poesia demora em mostrar imagens e intenções, como antes as igrejas apresentavam histórias. A palavra deixa o expectador entrar.

Por outro, o que prevaleceu para nós é a ideia de um cinema fotográfico - portanto, que mostra o interior e uma consciência individual capaz de expressar-se.
O que ocorre quando queremos colocar sub-texto demais ou cenários extravagantes, é que uma magia anula a outra.

Ao lermos as crônicas nas quais Macbeth se baseia, fica clara a primazia do ato, a crueldade aceita.
A crônica se passa em um mundo feudal no qual vale a lei do mais forte; o poder na era elisabetana já demanda maior estabilidade, concerto, argumentação. Se tentarmos compreender a psicologia desses seres até que eles se tornem "bons", o efeito disso será um melodrama.
É um pouco o que acontece, com efeito cômico, quando parece pouco a fala da Lady inspirando o assassinato e o diretor resolve justapor a isso uma relação sexual do casal.
Simplesmente não entendemos que o rei apareça numa catedral luminosa de altura impressionante. Um vitral colorido faz bem aos olhos, mas não combina com as bruxas e o pântano. Um palácio suntuoso nos leva a pensar num estágio complexo da vida social, em estabilidade talvez oriunda da prosperidade de uma cidade.

Outra escolha de cenário extravagante: o assassinato se passa num acampamento. Além de tornar bastante inverosímel tanta fúria em tendas próximas sem ninguém perceber, várias vezes no texto se fala sobre a questão de "ser em nossa casa", ou seja, as regras de hospitalidade são importantes.

Uma cena onde fica evidente essa fetichização do visual: na cena do banquete, logo após a morte de Banquo, os assassinos entram espalhafatosamente (quando na verdade o assassino aparece à porta) e sentam na mesa, falando longamente com o rei. Isso seria uma confissão de culpa e atrapalha a sequência da cena, que justamente vem de uma situação aparentemente normal para um escândalo público. Também a forma como Lady Macbeth fala com o marido parece mais um bate-boca do que a tentativa de esfriar a situação. Ela simplesmente grita de modo histérico. O sorriso coringa do rei deixa claro desde cedo que ele pirou por sua culpa.

Uma mudança interessante é que a esposa parece tentar evitar a loucura do marido.
Mas, logo depois ela parece chocada com a morte da esposa de Macduff, que aliás é assada na fogueira como num show, algo improvável. Mais uma tentativa de "explicar" o que no texto parece o desaparecimento rápido da personagem mais instigante, que marca por sua força. A crônica central, afinal, narra as aventuras de um rei e a personagem da esposa vem de outra história, que acaba quando o rei é morto em sua casa. Ela até aparece morta com serenidade sobre a cama, depois de um suicídio. Fotografa bem o marido falando de som e fúria com a amada nos braços. Isso porque nenhum homem contemporâneo poderia ser tão frio, nem o cinema pouco realista.

Depois disso temos guerreiros chorando como adolescentes de Nova Iorque que perderam o cachorro e Lady Macbeth indo até a capela-dos-bruxedos para dizer sozinha o que devia dizer sonâmbula para o marido. Isso porque o cenário é muito mais interessante, e um close justifica uma estrelas no elenco. Em tudo a voz e a ação brigam, para deixar mais claro e colocar mais significado. É como se não se quisesse errar no mundo do Homem de Ferro.

O efeito final é de perdermos muitas das palavras, porque temos de acompanhar a cena. E perdemos a cena, porque com tanta emoção, tudo parece mais lento e artificialmente "intenso".
O ato V tem somente oito cenas porque sabiamente Shakespeare evita enrolar sobre batalhas e vingança - no filme são ainda 25 minutos para que vejamos todas as possibilidades da fumaça e do vermelho. O conjunto é uma boa abordagem da batalha, certamente com a visualidade que o tema nos instiga, mas é impossível não pensar que há excesso, que a Macduff com a cabeça de Macbeth diria mais que o seu corpo ajoelhado com exércitos passando.

O filme é belo e não compromete o tema. Apenas sentimos que o diretor quis a todo momento falar mais alto que o texto, até mesmo explicando-o com a imagem. Um outro cinema faria aparecer o que se esconde. Deixaria espaço para construir junto, evitando a supersignificação contemporânea. O que se devia procurar é justamente como se afeta a estrutura viciada dos comportamentos com contradições, como o texto pode implodir-se, como mostrar é esconder e como a desumanização pode revelar novos panoramas.

Afonso Lima



terça-feira, abril 26, 2016

Traduzindo "Macbeth"

Ato I - cena 1
Um espaço aberto. Trovão e relâmpago. 
Entram três bruxas.

1 W - Nós três juntas em que oportunidade
no trovão, relâmpago ou tempestade?
2 W - Quando o tumulto terminado
Perdida a batalha e tudo acabado
3 W - Será isso antes do sol se deitar
1 W - Onde o lugar?
2 W - No pântano. 
3 W - Lá para Macbeth saudar. 
1 W - Eu vou, Graymalkin!
Todas - Paddock chama - sem demora 
o justo é horrível, o horrível justo
pairar através do nevoeiro e ar sujo

Cena 3 - Um pântano.
Trovão. Entram as três bruxas.

1 W - Onde minha irmã estava?
2 W - Com um porco na ponta da faca
3 W – Mana, e você?
1 W - A mulher de um marujo tinha
No colo castanhas, que comia
- Me dá! - falei pra dita cuja 
A gorda grita: Sai daqui, bruxa! 
Seu marido para Aleppo vai, senhor do Tigre
E numa peneira eu parto 
Como um rato sem rabo
Eu faço, eu faço, eu faço

2 W - Te dou um vento que assusta

1 W Gentileza sua 
3 W - E eu um a mais!

1 W - E eu tenho os demais!
Em cada porto que vão parar
Cada canto conhecido
Na carta dos homens do mar 
Eu o dreno como feno seco
Dormir nem pensar, noite e dia 
Nunca o olho bem fechado
Como homem marcado 
Semanas sem fim, em agonia 
a carne sumindo, ele definha 
Não posso ver ele naufragado,
Mas, deve ser bem tumultuado
Olha o que eu tenho aqui.
2 W - Mostra, mostra.
1 W - De um marujo o polegar
Afogado ao voltar ao lar.
3 W  - Um tambor! Um tambor!
Macbeth chegou!
Todas - Irmãs nefastas de mãos dadas
Por terra e mar em mil jornadas
Dançam em roda, dançam assim
Uma vez para você, outra pra mim
Três vezes três e nove no fim

Pronto, o encanto está feito! 

Afonso Lima 


domingo, abril 24, 2016

desobedeça

desobedeça
espadas mentiras mensageiro fatal
desobedeça
não acredite o que foi escrito
pode ser reescrito grite
a cidade e sua opacidade
desobedeça
flores no cinza caminhos em paz
silêncio lembrança
o espelho e sua imagem
não é verdade é desfazer o feito da coisa
uma criança e um tempo
do saber do corpo
a imaginação de mata seca e fogo
harpa no mar
montando golfinhos
aquele que foge do destino
fragilidade
na tempestade os ossos armados
não sou poeta de bem e de mal
tenho raízes e sinto na pele o inseto na árvore africana
o vento que leva
para terra ainda não existida
amar o que vem à praia
gente é coisa de novidade
desobedeça as palavras
os amores as luas adocicadas
silêncio lembrança
desobedeça a certeza o ódio
produção de cabeça
harpa no alto do edifício
descrença de vida seca
a lua no céu uma canção
amor de amar pedra de areia e fogo de ar
meu ser de peixe canta a noite de não ver
desobedeça

Afonso Lima

quarta-feira, abril 20, 2016

O furacão do golpe

O brasileiro está em estado de choque. Percebe que a Câmara foi engolida pelo poder econômico. As massas na rua, na frente do Congresso, nada adiantaram. A bagunça no Congresso já era evidente para quem acompanhava as comissões e CPIs. Eduardo Bolsonaro até mesmo conseguiu dizer que 1964 não existiu. Mas o país inteiro, dessa vez, estava observando. Só agora fica evidente o drama vivido pelo governo nesses meses, em que até a necessária redução do orçamento foi questionada para que se desse mais 10 milhões a congressistas novos. Em dez dias pode ser que caia uma presidente eleita sem que nada possa ser feito. (E o STF deixa Cunha coordenar tudo, sendo réu).

Mas também aprendemos coisas importantes... Eu fiquei impressionado, por exemplo, com uma conhecida culta e descolada, que diz que se o Lula foi preso, é porque deve. Eu perguntei se não estava acompanhando a avalanche de críticas. Ah, são posições, quando a coisa chega num limite...
É impressionante o domínio de uma informação absoluta. (Uma lei da ANATEL que quer reduzir o acesso à internet pode prejudicar ainda mais a participação popular).

Se muita gente de esquerda pode ser criticada porque, dentro do imediatismo de nossa cultura em que "todos tem direito ao prazer agora", teve pouca sensibilidade para perceber a enorme onda conservadora e as pressões sobre a Dilma, a classe média foi se assustando com as arbitrariedades de Moro, o show da jurista Janaína, parecendo possuída na defesa do impeachment, e por fim com o deputado Bolsonaro elogiando na votação o chefe do Departamento de Tortura de SP (aprendemos a criticar a ditadura - a rede trouxe a tortura à tona). O caso dos grampos na presidente, vazados por Moro à mídia, ficaram com cara de república bananeira.

Ficou evidente, como se diz, que é uma "operação para exterminar o PT". O que causa muita tristeza, já que começamos vendo pela primeira vez grandes empresários presos. Mas como bem disse o Ministro da Justiça, hoje o MP é uma carreira de classe média, que pode ter, como as caravanas de verde-amarelo na Paulista,  uma moralidade descontextualizada e justiceira, "bandido bom é bandido morto". E é bom lembrar que desde pequeno o menino de classe média aprende que sindicalista é safado e pobre é vagabundo. "Por que não mataram todos em 1964" era um cartaz de uma senhora boazinha na Paulista.

Nosso Congresso mostrou-se um show de horrores isolado do povo, até fascista. Nosso empresariado, vendo apenas como saída a diminuição do salário, aparece como patrocinador de uma violenta quebra institucional. O impeachment, uma chance de vingança e de acabar com a investigação que pode pegar a cúpula do PMDB. O Estado de Exceção que os negros da periferia vivem dentro do Brasil, apareceu na TV ao vivo.
Que sistema possibilitou um Congresso tão corrupto?
Como ficamos tanto tempo sem criticar a ditadura, elegendo deputados como Bolsonaro?
Que significa democracia se as oligarquias ainda dão as cartas?
Essas e outras questões surgem para perturbar - mas também para enriquecer o debate.

O presidente da Câmara funciona como um mediador de interesses. Cunha atrai os grupos econômicos com interesse em ações de governo ou matérias em tramitação no Legislativo, e canaliza dinheiro desses grupos para financiar campanhas eleitorais de parlamentares. Amarra compromissos desde as eleições – e eleições caras são fundamentais para que sejam eleitas sempre mais pessoas que tenham compromissos com financiadores poderosos.
http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FPolitica%2FA-quem-serve-a-reforma-politica-que-Eduardo-Cunha-tirou-do-bau-%2F4%2F32909


CAIXA 2 de FURNAS - Documentário lançado pelo blog Diário Centro do Mundo (DCM), sobre a “A Lista de Furnas”, revela o modus operandi do caixa 2 de políticos do PSDB na estatal mineira; depoimentos confirmam que 156 políticos se beneficiaram de propinas da usina; dentre os tucanos apontados na corrupção estão os presidenciáveis Aécio Neves, Geraldo Alckmin e José Serra.
A produção do DCM ganha luz em virtude do indiciamento do ex-deputado Roberto Jefferson e mais seis foram indiciados pela Delegacia Fazendária (Delfaz) por crime de corrupção ativa e lavagem de dinheiro na energética; abaixo, assista ao vídeo.

https://www.youtube.com/watch?v=13AS0HJDmWE


Os Líderes são lindos - Presidente do Conselho de Pastores do Brasil, que reúne 10 mil líderes evangélicos, e seguido por mais de 2,5 milhões de perfis em diferentes redes sociais, o pastor Silas Malafaia prepara um "ato profético", em Brasília, que deve reunir líderes de 85% da população evangélica brasileira e milhares de fiéis.
Previsto para coincidir com o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff no Congresso, o ato deve mobilizar caravanas de ônibus e promete revelar profecias, segundo o pastor, sobre o "fim da corrupção e da crise econômica"..
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160326_malafaia_entrevista_rs_if


- No caso brasileiro, mais importante ainda é a política de valorização do salário mínimo. Isso foi muito positivo. Quaisquer que sejam os dados, a diminuição da miséria no Brasil é um fato, pelas políticas introduzidas pelo PT. Mas é possível ainda que os 10% mais ricos tenham ampliado sua distância. Pode ser ter ao mesmo tempo uma diminuição da pobreza e um aumento da desigualdade. É um erro imaginar que o Brasil já fez o suficiente em termos de redução da pobreza.
http://www.cartacapital.com.br/economia/thomas-piketty-nao-discutir-impostos-sobre-riqueza-no-brasil-e-loucura-7525.html


"O golpe nasceu de um ménage à trois entre a escória liderada por Cunha, o ódio inoculado pela mídia na classe média e o plano de arrocho e entreguismo do PSDB... O STF, depois de se acoelhar de forma indecente na preservação do livre movimento de Cunha, poderá falar grosso com Moro, e assim encerrar a Lava Jato. A Chevron e a Shell terão o pré-sal prometido por Serra e pelo PSDB; a Globo renovará sua concessão facilmente a partir de 2018..."

http://cartamaior.com.br/?%2FEditorial%2FOs-antecedentes-da-tormenta-indicam-por-onde-recomecar-%2F35982

Governo Temer seria de instabilidade política e corte nos gastos sociaishttp://www.redebrasilatual.com.br/radio/programas/jornal-brasil-atual/2016/04/governo-temer-seria-de-instabilidade-politica-e-corte-nos-gastos-sociais

quarta-feira, abril 13, 2016

Lesbos

décima musa
o mar escuro
sol nos cabelos
de amor o mal
à deusa em pranto
- que faço por ti?
- que ela me ame
- quem, bela?
- a poesia


Afonso Lima


Uma sombra

- Sai daqui seu negro! Volta pra senzala.
Até hoje ouvia os gritos dos colegas da Politécnica. O pai pedira proteção do visconde.
Aguardava no jornal.
O dono discutia com o jornalista. Liberdade, cada um na sua especialidade. Fortes e fracos deveriam competir livremente? Aqui, ainda não somos nada. Nossos consumidores futuros são os pretos libertos. Temos que nos proteger, dizia o outro.
Ele percebia que era a voz do dono que dominava, apesar de toda a propaganda sobre modernização, imparcialidade e "profissionalismo".
Percebeu que jamais publicariam nada seu.
Saiu na rua.
- Mas um bêbado pode ser escritor - dizia a voz em sua mente.
- Um Dostoiévski com nariz amassado - disse um jornalista no bar sem perceber que ele estava ali. Eram os personagens de seu livro.
Essa república é mais autoritária que o Império, caminhava lentamente.
Uma sombra que acredita no novo regime.
Observa uma árvore antiga. O sol vai caindo.
Os cafés e livrarias do Velho Mundo na Rua do Ouvidor. O inferno dos infelizes no subúrbio.
E o que mais temiam era a Ameaça Vermelha.
Na escola, ouvira que os mestiços eram misturas que, como as mulas, eram erros da natureza.
E se fizesse sua própria revista?
Lembra do banho gelado no hospício e de como pensava em Dostoiévski, que sofreu na Sibéria.
Sentou-se num banco.
Lembrou-se de quando conversava com o Noronha, médico arrogante, metido à europeu.
- Quem me internou foi meu irmão que tem fé na fé do hospício, a ciência.
O outro fazia uma careta, mas não retrucava.
O sol se punha.


Afonso Lima



dados

Queria um romance comum como a gravidade
Um sonho de amor um drama normal cheio de pele e de mágoa
Mas tudo é rarefeito hotel solitário e pílula piscina sem água
e estou em são paulo

No alto, observo a cidade
são paulo é feia porque não tem verde
se são paulo tivesse verde seria bonita
mas são paulo tem verde
aqui, escuras folhas em primeiro plano curvo aço de luz
atrás um prédio dourado retângulo marrom janelas creme alto pastéis quadrados

as pessoas comem frutas e ouvem harpa sorrisos
é natal ou algo assim uma sacada, um prédio assinado uma exposição
o arco neoclássico compre aqui a ponta de um pinheiro
dentro da janela luzes vermelhas é uma agulha escura com luzes na ponta
um banco eu amor buraco
o futuro não pertence

é um jogo de dados
um deputado custa 4 milhões pode cair a nação
armadura e lança a educação exército cinzento maquiavélico show
umas rosas vermelhas uma lágrima seria bom
somos jovens deveríamos estar fazendo amor
marchas nas ruas suspiros em seus braços copos jogados seria fácil
olho de fora

não explicar incoerência e matéria
não tem verde ou flores brancas com violeta ligeiro janela indiscreta
o outro mundo se foi um monte de átomos amontoados sem alma
ganhamos o aqui e o agora presa nos dentes oba
não posso fazer afirmações eternas mas tudo isso me é estranho
retângulo marrom amor rasgado
uma sacada a noite
o futuro não pertence

Afonso Lima



terça-feira, abril 12, 2016

A irrealidade numa democracia parcial

O vice Michel Temer - em mais uma jogada "boleriana" genial (sim, alguém disse que ele saiu de um bolero e parece mesmo) - deixa vazar uma espécie de "carta à nação" antecipando sua "posse", mas fica evidente o clima de conspiração. Ou seja, o que era para gerar uma notícia positiva para fomentar o golpe (vivemos a surpresa do dia, são sempre novos os golpes elitistas), acabou como piada - "apressado come cru". Novamente, uma sensação de o vice estar no tempo errado.

"Mas o Temer está articulando assim tão abertamente?
Vergonhoso. E de fato está fazendo. Ele foi para o Rio de Janeiro conquistar os deputados do PMDB. E foi para outros estados. E quem está operacionalizando isso para ele é o Cunha. Eu tive uma conversa com o Cunha na semana passada. Porque eu fui na sala dele porque tinha um grupo querendo entrar no plenário e ele não autorizava. Fiquei puto da cara e fui lá. O Cunha falou: “Você não vai mais andar em Ponta Grossa. O Temer vai ser presidente, você vai ver. Ele estava numa reunião com o Paulinho da Força e o Rodrigo Maia do DEM. Eles coordenando, articulando e chamando os líderes partidários, os deputados, convencendo. O Mendonça Filho veio me pedir, do DEM: “Você tem que ser a favor”. Vários deles. Os caras que estão a favor do impeachment estão montando o governo com o Temer, eles vão assumir o comando de tudo. DEM, PSDB, todos esses caras. É o jogo aqui."
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/04/os-caras-que-estao-a-favor-do-impeachment-vao-assumir-o-comando-de-tudo.html

Mas isso revela ainda outra faceta do drama farsesco que estamos vivendo: o isolamento, o deslocamento da realidade, a "realidade paralela" que domina tanto em setores da mídia, como no meio político e entre os "manifestantes" de direita ou os "confuso patriotas". Assim, os golpistas pensaram que seria como em 1964: a sociedade embalada por campanhas de massa ou quieta. Algo mudou. A sociedade reagiu.

Uma pichação num muro em Porto Alegre diz: "o pré sal é nossa, Dilma traidora". Quem escreveu isso quer fazer política, mas não consegue diferenciar quem é quem.

Da mesma forma, uma fala do "líder" de um grupo de "revoltados" (MBL), Kim Kataguiri, de 20 anos:

"O PSDB é um partido social-democrata, defensor de políticas estatizantes e extremamente omisso enquanto oposição. Vale-se do papel de de antagonista do PT – incensado pelo próprio partido dos trabalhadores – para angariar os votos oposicionistas sem de fato representar seus anseios e demandas. Nossa percepção é de que o momento atual é também  negativo para o PSDB."

Eles, que venderam 125 estatais e instalaram o neoliberalismo do Consenso de Washington?


Ver os deputados na comissão de impeachment é assistir um circo - sem ofender aos nobres palhaços históricos. Eduardo Bolsonaro defende ao vivo 1964. Mostra capa de jonal dizendo que o povo comemorou o golpe e diz como o Congresso salvou o país de Jango. "Se deixarmos a esquerda escrever a história, amanhã seremos todos chamados de golpistas". Como pode um deputado não sair algemado disso? "Falta só uma semaninha, nossa primeira batalha deverá ser domingo, 17/ABR, com a votação no plenário da Câmara do Deputados." - ele escreve no seu Facebook.


São discursos que parecem se isolar da sociedade e até mesmo do estado atual da cultura - aquilo que historicamente percebemos como verdade. Para entender coisas como essas, ou o relatório maluco que recomenda o início do processo, temos de pensar que eles não se reportam à sociedade - por exemplo, uma imprensa plural que poderia responsabilizá-los e criticá-los. Como conseguimos criar um Congresso que representa apenas o poder econômico, com "partidos de aluguel" e grupelhos fanáticos? 


Pois é, nada de votar para melhorar a crise - nossa oligarquia "revoltada" nos faz perder um tempo precioso.

Além da mídia total de "seis famílias", a Justiça tem sido outra parceira do golpe - mas com movimento também do lado da legalidade, como os advogados que foram contra a OAB e seu processo de impeachment. 
Olhando retrospectivamente, a seletividade que vem sendo construída no Judiciário, principalmente de São Paulo, ajuda a manter sistemas corruptos e criar essa histeria "moralista". O MPF criou até uma "campanha anticorrupção", que, alem de ser acusada de violar direitos fundamentais como o habeas corpus, parece suspeita depois que os promotores ficaram marcados como "cães de caça ao Lula". 

- Procurador Rodrigo de Grandis engaveta oito ofícios do Ministério da Justiça que pediam apuração do escândalo do metrô de São Paulo e prejudica o andamento das investigações




As grandes empreiteiras envolvidas na Lava Jato são contratadas de grandes obras do governo paulista. Ao mesmo tempo, fizeram doações vultosas para campanhas eleitorais. Trata-se de um esquema de corrupção ou não?



"PSDB acha-se no governo do Estado há mais de um quarto de século. Durante esse tempo, conseguiu aparelhar um sistema de controle, ou pelo menos de influência dominante, sobre a Assembleia Legislativa, as Polícias e também, em grande parte, o Judiciário e o Ministério Público. O partido conseguiu, além disso, montar igualmente um esquema de controle do eleitorado, esquema esse, aliás, vinculado à corrupção."

Mas parte disso pode ser atribuído à influência de grupos conservadores do exterior. 

"A Atlas distribuiu no Brasil cerca de 20 mil dólares por ano, segundo Chafuen. O grupo Estudantes pela Liberdade recebeu no ano passado cerca de 10 mil dólares. "O dinheiro que mantém as atividades da Atlas vem, em sua maioria, de fundações e cidadãos dos Estados Unidos. (...) Os doadores têm preferências distintas. Alguns são religiosos conservadores; outros, libertários." (GGN)

Estão em campanha:

- O Liberdade na Estrada é um projeto do Instituto Ordem Livre, realizado em associação com os Estudantes Pela Liberdade e lideranças liberais de todo o Brasil. O evento anual iniciado em 2009 leva intelectuais liberais a universidades brasileiras, promovendo palestras e debates que abortam tópicos relevantes para o debate público nacional. 

No seu site, um dos diretores "analisa": 

"Não sabemos se João Goulart planejava um golpe para salvar o seu governo em 1964. Não sabemos ao certo o que teria acontecido caso esse golpe realmente tivesse sido dado. Não sabemos se Goulart entregaria o país a Fidel, Khrushchev ou Brizola. (...) Para o bem da democracia brasileira, os militares suspenderam liberdades civis, prenderam, torturaram e assassinaram. (...) Questões hipotéticas sobre um Brasil comunista e a realidade das ditaduras socialistas não podem enevoar a avaliação do que de fato aconteceu nas duas décadas de regime militar: censura à livre manifestação, capitalismo estatista, repressão política e a suspensão das liberdades civis mais básicas."

A luta do bem contra o mal - que Bush usou tão bem - não permite que analisemos o todo. 

"Nossa empresa deixou de vender equipamentos para a Petrobras nos anos 70. Era impossível vender diretamente sem propina. Tentamos de novo nos anos 80, 90 e até recentemente. Em 40 anos de persistentes tentativas, nada feito." - empresário Ricardo Semler.

http://www.viomundo.com.br/denuncias/camargo-correa.html

O pacote anticorrupção enviado pelo Executivo ao Congresso dorme há mais de um ano:

"A lentidão dificulta a punição de responsáveis por improbidade administrativa, enriquecimento ilícito, prática de caixa dois eleitoral e irregularidades contra a ordem pública. Todos os projetos foram encaminhados em regime de urgência encaminhados ao Congresso."
http://www.brasil.gov.br/governo/2016/03/demora-do-congresso-impede-governo-de-colocar-em-pratica-pacote-anticorrupcao

Who watches the watchmen?


"Mais da metade dos integrantes da comissão especial do impeachment na Câmara deve satisfações à Justiça. Dos 65 deputados, 35 respondem a inquéritos, ações criminais e cíveis, ou tiveram contas rejeitadas por órgãos de fiscalização ou controle"  (Deputado Enio Verri - com notícia Zero Hora)
Temer é PMDB. Grande nomes do partido apareceram na Lava Jato. O que será da Operação se ele (cruzcredo) assumisse? - “Aqui temos um ponto positivo que os Governos investigados do PT têm a seu favor. Boa parte da independência atual do Ministério Público, da capacidade técnica da Polícia Federal decorre de uma não intervenção do poder político, fato que tem que ser reconhecido. Os Governos anteriores realmente mantinham o controle das instituições, mas esperamos que isso esteja superado”, disse Santos Lima em palestra em São Paulo em 30 de março, registrada pelo Estado de S. Paulo. http://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/04/politica/1459798845_627316.html
"É evidente que campeia entre os juízes federais um ânimo de agressividade contra o Governo e não há nenhuma hesitação em fazer de tudo para impedir o seu funcionamento."
http://www.tijolaco.com.br/blog/justica-servico-do-caos-juiza-suspende-nomeacao-do-ministro-da-justica/

Por mais que se tente ser diplomático e "entender o outro lado", minha conclusão quanto aos "pato_otas" é que são pessoas sem informação e com a força da revolta (alienada). Vinte anos de ditadura dizendo que a esquerda é terrorismo, 30 anos sem se conseguir sair da educação privatizada. São especialistas sem visão de mundo. Nesse ambiente tóxico, o que no Mãos Limpas pode ter servido para ilustrar, aqui serve apenas como criminalização de um partido e uma pessoa, já que superfaturamento para campanhas começou com Brasília. Interessante ver como Glen Greenwald se posiciona ao entrevistar Lula - ele o trata como uma pessoa igual, impensável na nossa mídia manchada por elitismo e doutrinarismo. 

Para somar, é assustador como alguns comentaristas e jornalistas parecem basear-se em afirmações genéricas e preconceituosas, incapazes de ler o momento político ou entregando-se à propaganda. 
"A função do presidente é atrair o Congresso. Se não consegue, tem de sair. Não se pode governar sem o Congresso e com o povo", diz um senhor de barba branca. Mas como funciona a representabilidade se uma campanha vale 4 ou 6 milhões? Cunha pode ter eleito 100 deputados. O jornalista - um dos mais cultos e imparciais, afirma: "No Brasil, o presidente é deus. Temos de mudar isso".  O outro advogado explica novamente que presidencialismo é outra coisa... 

Somos um país parcialmente democratizado - na qual temos a lei, mas não os mecanismos de controle social, nem a pluralidade de informação - no qual uma massa, que ainda não teve acesso a reflexão histórica ou foi fanatizada em instituições conservadoras, é mobilizada por meios de controle que formam os desejos - que chamei de biopoder midiático-corporativo em outro texto. Nossa Justiça também parece tristemente partidarizada. Mas a sociedade está viva e explodem manifestos, manifestações e política nas redes sociais. 
Seja ou não tirada a presidente por força, a paralisação do governo por forças de direita deve ser um alerta. 

Afonso Lima 




segunda-feira, abril 11, 2016

Trabalho

O corpo da moça foi encontrado no lago.
Era corpo magro, ela comia três vezes por dia um pão escuro. Algumas vezes, sua comida tinha vermes.
As acomodações eram sujas. As camas, tábuas duras.
A senhora levava a produção para seu castelo e mostrava aos mercadores.
As cores, o brilho, a delicadeza do bordado.
Eles venderiam as roupas em lojas caras.
Ela havia se revoltado depois de apanhar do supervisor.
Ela fora dormir de madrugada e tinha de estar desperta na máquina ao raiar do sol.
Usou droga demais, tinha sono.
Ela começou a falar com as outras.
- Isso vai fazer com que a empresa vá para outro lugar - disse a líder do sindicato. Emprego de merda é melhor que fome.
A senhora planejara a festa para mercadores estrangeiros.
A polícia foi paga para surrar algumas mulheres.
O corpo foi encontrado no lago.

Afonso Lima



domingo, abril 10, 2016

Com as palavras

perigo
fiquemos juntos
a estação do medo
o olhar gelado
buscamos caminhos

já nem trama os heróis antigos
nem comédia nem desespero
o som o derreter do gelo
pó aos livros por improdutivos

nossos ossos emitem ecos
estão ocos espectros
a natureza ama perguntas novas
a percepção cria o fato

no tronco já frutos são vistos
num dia claro o belo
regeneram os ossos flores?
mudar o fado primavera


Afonso Lima

sábado, abril 09, 2016

A visita

Os funcionários estavam orgulhosos, mesmo sob aquele sol.
- Escolhemos esse metal depois de muitos testes. Ele podem se agarrar a ele, morder, bater, nada o danifica. A ração também é exata, os tecidos continuam vivos, no nível mínimo.
Os homens dentro das gaiolas pareciam resignados. Um olhar feroz apenas saía de um deles com os cabelos grisalhos.
- Vocês nunca pensaram em outra solução?
- Como assim?
Nada do que eu falava parecia razoável.
- Em duas horas eles estarão mortos. Nossos cálculos nunca falham. Vamos tomar um chá.
Sentamos numa casa de chá próxima.
- Agora os cortes atingiram a manutenção. Há um tempo atrás, desenvolvemos um método de limpar a pele sem nenhuma água, com um líquido especial. O fedor tornava a vida no ambiente impossível. Infelizmente, tivemos de retornar à água fria. Essas coisinhas que nos entristecem. O pó contra os insetos também, eles dormem mal quando perdem sangue.
Ao voltarmos, os guardas já retiravam os homens das gaiolas. Os levaram a um anexo, no qual algumas vísceras eram tiradas, o intestino coberto de serragem, as unhas eram cortadas e o cabelo raspado.
- Com o tempo, aprendemos a resolver tudo otimizando cada detalhe.
A tarde ia caindo. As covas eram de cimento, ficavam próximas a um lago. Perguntei se aquilo não contaminava a água.
- Sim, mas ninguém imagina beber disso aí.
Perguntei por que motivo vísceras eram tiradas.
- É nojento o corpo expelir seus líquidos.
Eles eram envoltos em tecido cinzento, as mãos sobre o peito, sobre eles espirravam uma solução da qual não pude saber a função. O corpo era coberto de serragem e um pó cinzento e uma tampa de metal se encaixava no retângulo de cimento. A terra os cobria. Uma placa de metal identificava o dia e o número da execução.
Depois fomos beber, mas eu não conseguia sorrir.

Afonso Lima

sexta-feira, abril 08, 2016

A lenda do cura fantasma

As famílias mais poderosas da região - donas dos moinhos, das terras e dos castelos - estavam temerosas. Uma onda de revoltas surgira em propriedades do Norte quando a peste e a fome as visitaram. Os líderes foram enforcados e tudo se acalmou.
- As pessoas ficam doentes porque não comem direito - disse o sacerdote. Ele convenceu as damas a reunir alimentos e construir escolas para os filhos dos camponeses. 
Uma menina, filha de um senhor, resolveu ir nessas escolas e perguntava a si mesma: - O que é o ser humano? O que é a verdade? 
- Essas pessoas são perigosas, não adiantaria lhes ensinar religião - disse o mais poderoso senhor. 
Cada castelo teve mais prisões e calabouços maiores. A cada dia, um grupo de vigilantes passou a circular pelos campos, observar "vagabundos, bêbados e possíveis criminosos" e levá-los para a cadeia.
Um jovem foi preso por dois anos porque dera abrigo, sem saber, a um ladrão. 
- Se se comportarem bem, poderão sair quando vier o julgamento. Isso gera um pânico silencioso. Não veremos rebeldes e baderneiros - disse o senhor.
As condições sub-humanas geraram revoltas nas prisões. Muitos foram mortos. Os que era liberados, tornavam-se assassinos. 
Uma moça observava os prisioneiros em trabalhos forçados e perguntava a si mesma: - O que é o ser humano? O que é a verdade? 
- Podemos pedir que cada aldeia tenha um grupo de voluntários vigilantes. Também recomendo que os voluntários estejam bem armados. Não queremos que um arruaceiro possa atingir nossos homens - disse o senhor. 
Um rapaz inocente foi morto por voluntários armados. Logo, jovens começaram a confrontar os vigilantes e a violência se alastrou. O cura tentou intervir e foi encarcerado. Algumas damas tentaram um protesto contra aquilo e foram igualmente levadas ao hospício. 
- Tudo isso teria sido resolvido se tivessem lembrado que os miseráveis têm alma - disse uma mulher ao enterrar seu filho. 
Surgiram lendas sobre o espírito do sacerdote lamentando pelos campos, amaldiçoando os senhores. 
Os muros, as grades, a guarda aumentaram por todo lugar. Os castelos estavam tristes, os campos incendiados ou abandonados, os cortesãos silenciosos e com medo. Os anos passaram e os senhores feudais começaram a se tornar estéreis, em decorrência de doenças venéreas. 
Ergueram um túmulo maior para o cura, um monumento aos enforcados e passaram a realizar uma festa em sua homenagem. Uma idosa sentava no túmulo e perguntava a si mesma: - O que é o ser humano? O que é a verdade? 

Afonso Lima

Novo parecer do PGR


Vazou o novo parecer do PGR contra a posse de Lula.
1) Ele não tem sangue e olhos azuis - e usa barba como Fidel. 
2) Ele não estudou naquele escola de 4 mil Reais com inglês e mandarim na infância
3) Ele não pensava que sindicalista era demoníaco
4) Ele não deve saber usar faca de peixe
5) Ele deve tomar vinho em copo - e jamais entenderia por que alguém gasta 120 mil dólares numa garrafa.
6) Ele não sabe a diferença entre Ibiza e Malé - prefere um sítio que pelamor...
7) Ele deu pros netos na Páscoa ovos não gourmet.
8) Ele tem 27 doutorados - mas não entrou na USP.
Janão - PGR


O navio

O navio, com grande parte dos judeus de Londres, chegara nessa ilha que sequer podia ser encontrada no mapa.
O rei os acolheu com generosidade e, depois de receber presentes, ofereceu-lhes um banquete.
O rabino maior contava sua aventura:
- Rei, nossas casas foram incendiadas. Um conselheiro da rainha resolveu dizer que o médico judeu dela era um espião espanhol. Foi esquartejado e todos nós tivemos de fugir. Os cristãos não podem emprestar dinheiro por motivos religiosos, mas já nos obrigaram a ir para a prisão da Torre e a usar uma estrela como sinal de vergonha. Estamos procurando as terras do sultão.
- Eu recebi aqui um judeu muito importante há alguns anos. Ele era médico e tratava com os quatro humores. Tinha um dom especial para, analisando as pupilas e as unhas, descobrir o tipo do homem e recomendar-lhe essências que ativavam seu elemento deficiente. Ele me contou uma história interessante. Chegou uma vez numa ilha na qual o rei escolhia uma moça da comunidade por ano para deixar dentro de um labirinto no qual morava um monstro que ele vencera para dominar o reino. Esse ano o rei estava triste e pediu-lhe uma saída. Ele deu à moça um filtro que fazia com que soltasse um odor que afastava qualquer ser vivo. Também lhe deu uma flecha envenenada com uma essência que podia alterar o espírito. Ela feriu o monstro enquanto este dormia. Ele purgou demônios e seu corpo ferveu deixando à mostra os ossos. Imediatamente nasceu nova carne. Descobriu-se que ele podia conversar com os animais, tocar harpa e sabia sobre os astros. O monstro passou ser a o astrólogo e o contador de histórias no palácio. O rei casou com a moça e transformou o labirinto num jardim e o médico cultivou lá ervas, flores e árvores. Um dia, porém, ele sonhou que a ilha seria devastada por uma tempestade e fugiu. 
- Muito interessante o que nos conta - disse o rabino maior - levaremos para as terras do sultão a maravilha. Diz um antigo provérbio que é pelo fio da imaginação que se escapa do mundo chão. 
O navio partiu carregado de presentes e víveres. 


Afonso Lima

quarta-feira, abril 06, 2016

A base

Sobre a cidade-fortaleza, uma tristeza pairava como névoa.
Nós vivíamos isolados da cidade, todos que trabalhavam conosco eram da República, éramos apenas uma base militar.
Naquele dia meu colega Bieloskov estava quieto. Estava devendo para Kan Mei, que havia lhe conseguido fumo.
- Eu tive um pesadelo. Uma casa em chamas e tínhamos de sair muito rápido de lá.
O alarme tocou. Uma moça que trabalhava na cozinha havia saído e os nativos a raptaram.
- Vamos jogar químicos na floresta - avisou o capitão.
Isso significava usar roupas especiais, deixar as árvores desfolhadas como pedras.
- Nós fazemos de tudo para não chegar perto deles, e olha o que eles fazem - dizia o capitão.
Os nativos se desesperaram quando viram a floresta desaparecer.
Pássaros confusos tentavam cantar sobre galhos mortos.
Nós também ficamos melancólicos.
- Eu nem sei quem ou o que nos mandou pra cá - disse Bieloskov.
Ele ficou fumando seu cigarro enquanto nós fazíamos uma fila com os prisioneiras na praça central da cidade-fortaleza.
De repente, um deles pegou uma pedra e acertou Bieloskov.
Ele caiu, uma fratura na cabeça, sangrando muito.
- Tenho dinheiro na minha mochila, ele me disse com dificuldade, pague minha dívida.
E gritava muito enquanto os médicos o levaram.
A noite caiu. Executamos o nativo.
Uma tristeza pairava como névoa.
Bieloskov foi enterrado logo que o sol nasceu.

Afonso Lima

Janockyl

As pessoas da aldeia o avisaram: quando se entra no outro mundo o tempo é diferente. Fazer o quê? Janockyl tinha 16 anos e tinha de subir a montanha, desafiar um perigo, trazer algum tesouro pra seu povo e virar um herói. Ele entrou no lago e quando saiu, percebeu que era tudo outra coisa.
Mas agora vinha o dragão falando em direitos dos seres monstruosos.
- Essa coisa de ficar pendurando cabeças na parede demonstra apenas ignorância.
Ele se sentia desmotivado. Um coro de pássaros de penas de fogo reforçavam a opinião e as cobras douradas intervinham com exemplos ancestrais.
- Os modernos falam muito de Hércules, que arrasta os monstros do inferno - disse a cobra de asas - mas os antigos gostavam mais de Ganimedes que, dançando nos montes com seus amigos, foi levado por Zeus para o Olimpo.
- Eu não posso chegar em casa sem nada. Vão dizer que sou uma criança e rir de mim - disse Janockyl.
O dragão lhe deu um de seus chifres.
Quando voltou, as pessoas pareciam diferentes. O tempo havia passado para elas.
- Não se pensa mais nessas coisas, disse a irmã, já uma moça. Agora estamos pensando em como salvar os animais que não têm mais onde morar porque cortaram as árvores.
Janockyl decidiu sair pelo mundo e, na lua cheia, seguiu para o Norte.

Afonso Lima