- É uma nova era de irracionalismo, parecida com a do fascismo...
Elas estacionaram e caminhavam em frente à Prefeitura, no viaduto, tumulto do meio-dia.
Sentaram no café do centro cultural. Ela iria dar uma palestra sobre seu novo livro.
- Sabe, como escritora, eu sempre desejei que as pessoas entrassem no meu mundo de imaginação. Que as pessoas deixassem suas convicções e mergulhassem no meu sonho. E agora... Parece que a capacidade de analisar a realidade desapareceu.
- Você que dizer... o prefeito?
- Sim, medo.
- Mas ele parece tão enérgico. Tinham muita crítica contra o outro, né?
- Ódio pode ser criado... O plano é reduzir, modificar, vender...
- Ele pode ter feito coisas boas, como na saúde...
- Não podemos ter uma autocomplacência que se deixa enganar... as coisas estão em retrocesso, os planos desmontados, parece que nas reuniões as ideias da população "não interessam".
Estaria sendo injusta? Lembrou de sua vó dizendo: "Não sou democrática com fascistas".
- Quem sabe? Nem conseguimos entender o que está acontecendo tamanha a guerra de propaganda.
A moça trouxe o café. Ela lembrou de quando era jovem e diziam que ocorriam torturas, mas ninguém sabia...
- O que me assusta é que começaram pelas campanhas de rádio e na internet esses fanatismos... Deputados e vereadores foram encurralados pelos moradores. Os meios institucionais não valem, os políticos sérios podem fazer reuniões e falar de números e os jovens vereadores cheios de ódio vão dizer que tudo é comunismo, e fazer uma transmissão ao vivo; você não vai saber a verdade... O dinheiro vai levar a sociedade para seu barco.
Ela pensou sobre toda a filosofia de que a arte tem um espaço próprio, toda linguagem é estilização, dizia um professor. Por outro lado, percebia que a mente havia se fragmentado de forma incrível, blocos de ideias opostas podiam conviver juntos. De modo geral, ela achava que arte e política eram dois níveis distintos, a imaginação era também algo político, a subjetividade era libertar-se do poder oficial, seja a propaganda, seja o partido, mas não estava certa de nada. Um debate que já existia na Rússia de Dostoiévski. É preciso um certo idealismo para um romance acontecer? É melhor menos reflexão e ações firmes de homens capazes de alterar a realidade? De que modo podíamos nos relacionar com o mundo sem criar uma submissão ou empobrecimento?
- Eu concordo com você no sentido em que acho exagerada essa promoção pessoal. Realmente, parece que a democracia virou isso. Eu tenho aquela amiga que trabalha na Câmara. Havia muita discussão, dinheiro no orçamento para projetos. Para dizer que está fazendo, tem de negar e refazer tudo o que já foi pensado. É uma marca de grande força, o "trabalho e competência".
- E se, apesar de tudo, ele for menos competente? E se essa gente estiver propagando uma mentira involuntariamente? Eu te juro que nada do que eu vejo parece apontar o contrário. Numa cidade tão injusta, o plano do executivo é reduzir investimentos. Até livros das bibliotecas estão sendo triturados, de humanidades, sobre ditadura... A moça que escreveu um texto denunciando o abandono do plano municipal do livro recebe visita do chefe para intimidá-la.
Talvez tenhamos esquecido o quanto é importante sínteses de vida para nos guiar na escuridão.
Alguém veio pedir um autógrafo. Um mundo imaginário que é um sistema de mentiras. Ela pensava que seu mundo imaginário sempre respondeu ao anseio de terra.
Afonso Junior Ferreira de Lima