Muitas vezes me pego pensando como poderíamos nós, filhos do prosaico, heróis de aventuras mínimas, escrever algo tão ordenado, idealista ou profundo como uma narrativa russa. Nós, que vamos lutar na padaria, comemos no restaurante da esquina, subimos e descemos de vagões comprados com sobrepreço. Sem o peso de histórias épicas ou mesmo sem tempo de ordenar em grandes estruturas delicadas o fluxo de minutos-resposta. Será que temos um novo gênero, a roda dos dias ainda não explicados, a natureza-morta viva?
Penso em como circular em torno do vazio, e o que me vem sempre é o mais simples dos temas, por exemplo, o cão que agora late em plena avenida do século XXI.
Eu e meus vizinhos, por exemplo. A sintonia que se cria nesses sons mudos, sem a capa da razão e do diálogo. Mudaram-se há pouco, três deles.
Não ouço mais o violão da frente à meia-noite.
Nem os amigos de sexta do apartamento abaixo.
A criança que chora, a musica pop do domingo no pátio também partiram com a família do primeiro andar.
A música dos vizinhos e suas rotinas ficam mais claras quando existe apenas silêncio e escuridão.
A menina ensinava seu irmãozinho a falar.
O casal de namorados brigava. Compraram uma TV nova, assisto junto vários filmes.
A moça bonita diz ao seu namorado que estava gostando com gemidos indubitáveis. (Mas ela se foi).
Nada disso tem o peso da morte, o questionamento sobre o destino, a culpa de um crime já realizado ou nunca nascido, o peso da metafísica ou da crise.
Mas emana desse amontoado de objetos já sem utilidade uma poesia leve e dura como a alma de um robô. Porque de alguma forma devem ter algo as pedras, as folhas marrons e a antena de uma formiga, mesmo que seja um alma mais lisa e austera que a de um cristão.
Uma vez, na universidade, disse meu professor:
- Diferente do mundo para nós, ao poeta, as coisas mínimas são estranhas.
Eu pensei logo: todas as coisas são estranhas.
Muitas vezes podem essas vozes soarem juntas. Eu vejo no computador um filme e a vizinha fala sobre o livro que lhe deu origem. Eu leio um livro sobre Cuba e a música de domingo é de Cuba. Eu resolvo cantarolar uma canção e o casal fala do autor da canção.
São movimentos conjuntos, a ligação pros pais, o choro, a briga por ciúme.
E, acima de tudo, que música eu toco?
Afonso Jr. Lima
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