Na véspera da fuga, tendo comprado o guia as renas e as peles pra enfrentar a neve, ele começou a parar de fingir-se de doente e procurou o chefe da guarda pra avisar que poderia seguir viagem para o norte.
O funcionário o convidou para uma peça de Tchékhov. A civilização ainda existia, afinal.
A peça tinha tido uma estréia pouco favorável e sido responsável pelos sete anos que o autor ficou sem escrever para o teatro.
Oito anos depois, ele a remodelou, tirou metade dos personagens e mudou o final de suicídio para homicídio fracassado.
Também trocou seu nome de "O Demônio da Madeira" para "Tio Vânia".
Partiu de noite, e a jornada através de nevascas, sem comida, sem água e sem dormir, esgotou as renas, que morriam.
O fugitivo, quando parava em cabanas de nativos, pensava por que motivo Tchékhov tinha partido para a Sibéria em 1890, comendo apenas pão, alho selvagem e chá ruim. Foi logo depois do fracasso da peça, contara o funcionário. A maior colônia de trabalhos forçados da Rússia.
O mundo de Tchékhov já tinha morrido, mas insistia em seguir vivendo, e agora, no julgamento, ficara provado que os terroristas do grupo Cem Negros haviam sido organizados pela polícia política do czar. Pós-vida como terror.
Ele lera, deitado em sua cama, na prisão, todos os clássicos europeus, recebia todos os livros novos, o romance francês moderno. Sua cela era chamada de cela-biblioteca.
"Por favor, mergulhe no lago, mesmo que seja para se afogar. Consiga para si mesma alguma experiência vital".
O médico havia escrito tudo aquilo num país em que as cidades nasceram apenas como fortalezas militares e só 13% da população era urbana. Seu avó vivera escravizado.
"Mergulhe no lago".
Ao seu redor, os bosques iam se aproximando, os lobos deixavam suas pegadas na neve, os aldeões comiam o peixe vivo em suas mãos. Finalmente chegaram no ponto extremo da estrada de ferro. Os outros condenados chegavam ao círculo polar.
Afonso Junior Ferreira de Lima
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