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sábado, setembro 01, 2018

O outro mundo


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"A força, o espírito de ataque, a decisão deve prevalecer sobre atividades mentais inúteis e as colônias de estetas pacíficos e degenerados. O belo e a força são o caminho para o Progresso", disse o Primeiro Ministro.

Depois, fomos fazer compras na Exposição Universal. Eu tinha 16 anos, eu era feliz.

"O fascínio do corpo", disse minha amiga de cabelos brancos. "Será que existe uma falha? Quero dizer, no nosso mundo."

Eu observava um desfile de jovens correndo dentro de próteses de esqueleto externo. Ela era uma "confusa radicalizada". Mas, vindo de família nobre, nunca pode ser presa.

"O projeto de intelecto como liderança da raça não funcionou. Nossa Academia criou um problema. Eu e meu grupo nos libertamos".

Eu odiava quando começavam essas reflexões sombrias. Desviei o assunto para o show que começava no palco. "Sexo e Liberdade" era um grupo de jovens negras que alcançara o sucesso recentemente.

Minha amiga disse baixo: "Do nativo não se pode incentivar mais que a força física".

Ela sempre fora um fracasso financeiro. Na sua casa, repleta de gatos, arquivos digitais de entrevistas, ícones de culturas primitivas, ela vivia como num outro mundo.

Ela desapareceu - "Raptada pelos radicais terroristas", disse a Polícia.

*

Amplas avenidas. O aço, os jardins, o vidro do Templo do Amanhã.

Longa linhagem de burocratas zelando pelos campos de trabalho.

Ao nascer, meu destino foi dado como secretária do Berçário de Vida Artificial.

Na Academia, estudava Direito, a questão do julgamento sumário, a sub-raça, o banimento dos inimigos.

Mas eu visitei um campo de custódia protetora. 

Um dia, acordei gritando. Minha família foi chamada na delegacia. Eu fugi. 

*

Todas as coisas que as palavras escondem.

O discurso não está na fala.

Eu escrevi no caderno de aula: "Falta alguma coisa".

O rapazinho que limpava as janelas do meu prédio (antes dos progs) queria ser militar. Meu irmão queria ser empresário.

Toda a informação escrita devia ser rápida, "informação precisa, ágil e audaz".

Nós ríamos de pessoas que queriam escrever sem propósito.

"Só o trabalho é Riqueza".

"Os inimigos ideológicos trazem pobreza à nação".

"Juntos somos mais fortes".

"A polícia é sua melhor amiga".

"O homossexualismo é uma praga para a nação".

"Os traidores da Liberdade devem pagar por isso".

Houve um tempo em que se protestava na rua. Quando seus líderes foram presos e acusados de desvio de dinheiro, sua "degeneração moral" foi amplamente noticiada.

Se você fizer perguntas estranhas será denunciado e pode parar num campo de custódia protetora.

Se falar coisas "utópicas" em espaço público pode ir para um campo de trabalho.

Se se associar por motivo suspeito será um "desaparecido".

Precisamos avançar.

No nosso congresso de realidade ampliada, os hinos, as flores, repetir de mãos dadas as canções tradicionais nos sábados ao sol.

Receber a medalha de "Herói da Nova Era".

Minha mãe me levou na clínica quando me senti angustiada. Não havia essa doença registrada.

Deve haver alguma outra coisa.


*

Eu lutava. Eu era bela.

Eles me ensinaram os Provérbios. Antigamente, havia uma forma de sair.

O livro falava sobre um hotel-ambiente em que se poderia viver a guerra.

O livro fala sobre "A mente nativa", como foi lido por soldados depois acusados de tortura.

O livro sobre os escravizados que - depois de uma revolta - acabavam voltando às amarras e idolatrando os opressores.

O livro sobre a Guerra ao Terror e como o presidente planejou a eliminação das imagens de mortos vítimas do "choque e pavor", bombardeando emissoras e matando jornalistas.

O fogo acabou com tudo. Isso foi logo no início.

*

No templo, ao lado do rio prateado, o sacerdote me entrega um objeto estranho.

Eu sabia que não era apenas sentimentos rápidos, impulsos, propaganda ou piada a vida humana.

Nunca havia visto nada assim.

Percebo que ali um pensamento se completa.

*

Eu partira, como um morto.

Convocava os espíritos invisíveis.

Descia ao mundo dos mortos.

Caminhava na escuridão.

Ouvia o Senhor do Mundo Inferior.

-

Afonso Junior Lima







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