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segunda-feira, maio 01, 2023

O dia que entrevistei Borges

Uma das minhas primeiras entrevistas. Foi uma sorte que ele estivesse vivo ainda. Buenos Aires era ainda um mistério. Folhas amarelas e um vento frio, o sol alegre.

Seria muito difícil dizer do que falamos. As perguntas ficaram rapidamente no papel. (Os livros em inglês aos seis anos, Que significa para o senhor a nação, Que responderia aos que lhe acusam de colonial, Quanto o homem comum influi no seu trabalho, Como pode escrever aquela carta). 

JLB é uma espécie de moda que nunca passa, tem o dos esnobes, dos nacionalistas, o Jorge dos policiais, dos aventureiros, dos buscadores de enigmas. O medo que sentimos é o de encontrar um fundador, o mesmo inquieto amor, de ver que também tem seus pés de barro. 

A casa não era assim muito aconchegante, mofo, parecia um pouco deserta, como se apenas tivesse a cadeira em que ele sentava. Parece óbvio que deveria comer em algum lugar, dormir em algum lugar, que deveria haver um estante, algo em que refletir-se inutilmente, mas eu a recordo assim, paredes brancas e um homem numa cadeira. 

"Quantas estrelas existem no céu?" - perguntou. "Sempre estamos em alguma galáxia".

Pediu que eu achasse na biblioteca um poema chinês e lesse para ele. Era sobre mim.

Era um menino, espiava no sol as pedras transparentes achadas na areia. 

Contou-me sobre a primeira vez que desconfiou que seu sonho era a verdadeira realidade.

Sobre a experiência de ver a si mesmo num bar.

Sobre a descoberta, ainda criança, de uma casa de espelhos na qual se perdeu.

De como um manuscrito na bibliteca de seu pai o encontrou.

Imaginei que sua mão de cego sobre uma cabeça de bode podia hipnotizar, mas era apenas uma homenagem a Fausto. A planta selvagem atrás dele podia transformar-se em algo sinistro por causa do vidro opaco. A pequena estátua de Atená com o nariz quebrado. Um globo de vidro dentro do qual se via uma sala burguesa rodeada de um jardim. A faca gasta na mesa de mármore. Havia seus pedaços no ar e na água. Era como entrar num jogo. O jogo precisa da fé na sua verdade.

Eu entendi que seu nome significava um portal, uma dimensão chamada Palavra.

Eu acho, sim, era justamente o significante no qual tudo cabia, significante universal da Escritura, um infinito, o que gerava um certo horror. E, maior ainda, na taça de chá, na bengala de madeira, xadrez com rostos de escritores em pedra, o tigre romântico pendurado, horror da fabricação nesse nome.  

Ele falava sem parar. Aos poucos percebi que estava dentro de seu universo, que ele devorava as galáxias.

Ou talvez tivéssemos ficado apenas em silêncio, duas horas um em frente ao outro numa sala vazia.

"O verdadeiro é a máscara em que acreditamos", disso eu lembro. 

Nunca publiquei nada disso. 

Afonso Jr Lima




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